As coisas que não são coisas: dois casos no Museu Nacional

por Carina Martins Costa

 

Quando pensamos em coisas, artefatos ou bens materiais, estamos no terreno da cultura. São construções realizadas pelo ser humano com variados objetivos – estético, funcional, espiritual, memorial, dentre outros – e revelam como sentimos, pensamos, trabalhamos, somos, criamos, imaginamos. São transformações na natureza que marcam nossa historicidade. Por muito tempo, a própria trajetória histórica dos povos foi classificada por meio do domínio das técnicas e dos artefatos materiais. Em Minas, ao menos, coisa também é verbo. Falamos “vamos coisar” com naturalidade. Ou seja, aquela ação que nos falta, que nos escapa, que não lembramos, vira “coisar”. Coisa também é tudo que se relaciona com o inanimado, portanto, sem alma. Sem dúvida, uma compreensão bastante ocidental das coisas, mas isso é outra história.

O Museu Nacional possuía 20 milhões de itens. Parte dos itens era considerada natural, como fósseis, animais e plantas; outra pertencia às coisas humanas, produzidas por diferentes sociedades, espaços e tempos. Das coisas humanas, a variedade era impressionante. Desde coleções arqueológicas greco-romanas de Teresa Cristina até múmias do Egito antigo; do trono de Daomé aos assentamentos de candomblé; das urnas marajoaras às plumárias Munduruku… Seriam necessárias muitas páginas para simplesmente descrever a monumental coleção devorada pelo fogo. No meio dessa vastidão, selecionei duas coisas que não são coisas para pensar ao mesmo tempo sobre elas e sobre o museu.

 

 

Vamos à primeira. O meteorito de Bendengó sobreviveu ao incêndio, como as fotos atestam. Ele é inumano, ou seja, foi produzido pela natureza, literalmente caído dos céus. Trata-se de um meteorito de mais de cinco toneladas encontrado no interior da Bahia há mais de 200 anos. A descoberta chamou bastante atenção de cientistas e colecionadores à época. Até hoje, é considerado a 16ª massa individual catalogada. Suas amostras estão espalhadas em vários museus do mundo. No Brasil, podemos conferir amostras no Museu de Ciência e Técnica da Escola de Minas (Ouro Preto – MG); Museu de Geociências da Universidade de São Paulo (São Paulo – SP); Museu de Mineralogia Prof. Djalma Guimarães (Belo Horizonte – MG) e Museu Geológico da Bahia (Salvador – BA).

Sua descoberta é alvo de controvérsia. Alguns relatam que foi um rapaz de nome Domingos; outros, Bernardino ou Joaquim, mas todos de sobrenome Botelho. Após esse achado, foram realizadas três tentativas de transporte para Salvador, todas infrutíferas. O peso era muito maior que as condições técnicas de transporte. No início do século XIX, os cientistas Spix e Martius foram até a Bahia para estudar o meteorito, que se encontrava parcialmente enterrado. Registraram essa visita em seu famoso livro, Viagem pelo Brasil.

FONTE: SPIX & MARTIUS. Viagem pelo Brasil (1817). São Paulo: Departamento de Cultura, 1940, p.72. Acervo digital Biblioteca Brasiliana Guita e José Mindlin.

Muitos anos depois, D. Pedro II, bastante interessado nas ciências, ordenou sua transferência para o Rio. Foi organizada uma expedição terrestre que durou 126 dias para percorrer os 113 km até a estrada de ferro.  Toda a saga durou um ano e mobilizou transporte por via terrestre, trem e até navio. Enfim, o meteorito chegou ao Rio e foi depositado no Museu Nacional após a extração das amostras para os demais museus. O que essa história nos conta? Do assombro dessa descoberta? De sua importância para compreensão dos meteoritos e do cosmos? Do possível medo dos moradores da Bahia de outra queda tendo em vista que destruíram o monumento em homenagem ao meteorito? Da existência de governantes que amaram e lutaram pela ciência? De uma incrível jornada que envolveu centenas de pessoas, incontáveis esforços e quantia vultosa para a conservação e pesquisa de um meteorito? Da persistência da natureza frente aos recentes descuidos criminosos com nosso patrimônio?

A segunda coisa que não é coisa: as múmias indígenas encontradas em Minas Gerais. Os museus expõem corpos como coisas. Isso choca nossa sensibilidade atual, mas, no século XIX, era comum a aquisição e a exibição de múmias de povos considerados exóticos, a saber, não europeus e, sobretudo, não cristãos. No Museu Nacional, as partes dos corpos continuaram a ser exibidas como coisas até o dia do incêndio – corpos indígenas encontrados em uma gruta da Fazenda Fortaleza de Sant’ Anna (Goianá – MG), de propriedade da Baronesa de Santana, ela própria uma colecionadora de antiguidades. A memória oficial descreve que ela doou as múmias a D. Pedro II. A circulação do presente, sem dúvida instigante e atrelado a uma prática de colecionamento de curiosidades, demonstrava a valorização e a legitimação do mesmo no circuito científico, que era também político e social.

À época, não se pensava em retornar os corpos descobertos aos povos indígenas: a hipótese mais provável é que eram Maxakali. As fotografias são ruins pelo reflexo da vitrine da exposição, mas podemos identificar um corpo adulto (uma mulher) e dois bebês. De acordo com o arqueólogo Ângelo Alves Correa (USP), o achado motivou uma expedição organizada pelo Museu Nacional à Fazenda Fortaleza de Sant’Anna, em 1875, constituída pelo seu diretor à época, Ladislau Netto, pelo naturalista e diretor da Comissão Geológica do Império, Charles Frederick Hartt, entre outros cientistas, o que demonstra a sua grande importância. Nesse caso, a hipótese de que a própria Baronesa presenteou o Imperador cai por terra, tendo em vista que ela faleceu em 1870. Consta que o próprio D. Pedro II teria ido à Fazenda em 1869 em companhia do Conde Gobineau, mas não há nenhum registro dessa visita. Assim, a “doação” seria mais uma homenagem póstuma à Baronesa, uma forma de registrar sua memória: o suposto presente ao Imperador dizia muito de quem dava, de quem recebia e do tipo de vínculo que se visualizava entre eles.

Duas coisas que não são coisas. Os museus, tal como o fogo, também promovem transmutações. Um meteorito que caiu do céu e corpos indígenas mumificados viram coleção. O inumano permaneceu, ainda que chamuscado. As labaredas, contudo, transformaram os corpos em cinzas.

 

 

 

PARA SABER MAIS

Relatório original da Expedição do Meteorito Bendegó (1888), com fotografias: http://www.museunacional.ufrj.br/semear/docs/Livros/livro_CARVALHO-JOSE.pdf. Acesso em: 1 de junho de 2019.

Artigo sobre o meteorito Bendegó: http://www.scielo.br/pdf/bjgeo/v41n1/2317-4692-bjgeo-41-01-141.pdf. Acesso em: 1 de junho de 2019.

Expedição Spix e Martius:https://digital.bbm.usp.br/view/?45000031024&bbm/7757#page/10/mode/2up. Acesso em: 1 de junho de 2019.

Artigo sobre as múmias indígenas encontradas em Minas Gerais: https://periodicos.ufpel.edu.br/ojs2/index.php/lepaarq/search/authors/view?firstName=%C3%82ngelo&middleName=Alves&lastName=Corr%C3%AAa&affiliation=MAE-USP&country=BR. Acesso em: 4 de junho de 2019.

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