Monumentos e insurreição popular: põe no museu ou deixa quebrar?

por Fernanda Castro

Para falar sobre os recentes acontecimentos envolvendo movimentos populares, monumentos e memória, gostaria de lembrar de Anatoli Lunatcharsky (1875-1933). Ele foi Comissário do Povo para a Instrução Pública, logo após a Revolução Russa, sendo responsável pelas políticas públicas de educação e cultura da então União Soviética, até 1929.

Num texto de 1919, intitulado O poder soviético e os monumentos do passado, Lunatcharsky defende a preservação e apropriação da cultura universal produzida pela humanidade, o aproveitamento da produção histórica humana para promover uma arte livre, popular e referenciada na sociedade socialista.

Sua fala era contextualizada em meio ao debate entre revolucionários sobre o papel da arte e da memória na sociedade, em que, por um lado, defendia-se a produção de uma arte engajada que negava a cultura burguesa e, por outro, defendia-se uma produção cultural soviética que mantivesse o que a humanidade já havia produzido no curso da história, como base de uma produção popular e transformadora. No terreno da memória, o debate sobre monumentos, museus e documentos associava-se às políticas para educação e produção de um novo discurso humano: aquele baseado no socialismo.

Na introdução do texto, Lunatcharsky mostra indignação com rumores de que a imprensa norte americana propagava notícias de que o governo soviético promovia vandalismo em museus, palácios propriedades senhoriais e templos, que ele considerava verdadeiros monumentos do passado e, por vezes, obras de arte.

Assumindo que em momentos de guerra, revoluções e insurreições é comum que haja ações contra o patrimônio, o Comissário do Povo defendeu e pôs em prática ações que, em momentos de normalidade e harmonia social, promoveram a adaptação daqueles resquícios artísticos e históricos do passado à nova realidade. Palácios transformados em museus ou salas de música, que, em todo caso, serviam à ampla formação do povo.

Vemos, em meados de 2020, acontecerem em todo mundo grandes mobilizações em defesa das vidas negras, após uma série de assassinatos, que como fatos a serem registrados nos anais da história, nos lembram que, por todo mundo, o racismo é ainda parte da estrutura social do capitalismo.

Em manifestações que ocorrem dos EUA ao Reino Unido, de Portugal ao Brasil, em meio à Pandemia de Covid-19, milhares de pessoas têm ido às ruas questionar autoridades, a polícia, o sistema e… o patrimônio histórico que os representa.

Dividindo a opinião pública, estátuas são derrubadas, monumentos são pichados, são feitas releituras e performances que questionam os heróis de uma sociedade escravocrata, racista e opressora.

Há quem diga que todo patrimônio deve ser preservado, pois conta a história do povo e que os atos são puro vandalismo. Há quem defenda que todos os monumentos de traficantes de negros, mercadores e governantes, que dirigiram governos racistas, devem ser derrubados. Alguns defendem a ação autoritária do Estado, na defesa dos monumentos, outros defendem o poder popular. Há ainda quem reivindique esses monumentos, em nome de alguma supremacia branca, já que estamos vivendo tempos de ressurgimento do fascismo no mundo.

Quanto aos indignados pelos desmontes da memória racista e opressora de brancos sobre negros, o que será que dizem sobre outros monumentos públicos que estão abandonados, cercados por grades em praças públicas, depredados, esquecidos?

Por que seu repúdio aparece apenas com relação à derrubada de monumentos em situações insurrecionais? Estarão eles defendendo os monumentos em si ou a memória que representam?

O que disseram quando foram derrubados os monumentos aos revolucionários socialistas em países do Leste Europeu? Terão assistido à transmissão ao vivo da derrubada da estátua de Lênin, promovida pelo governo Ucraniano, em 2016?

lenin1
Fonte: G1. Foto: Prylepa Oleksandr / Unian / AFP

Será que tiram fotografias no Marx-Engels-Forum, quando saem de férias a conhecer Berlim? Ou será que se indignam com o governo Alemão por manterem esse ícone comunista em meio à praça pública?

Percebem quando é o poder público que remove ou elimina monumentos para construir rodovias, vias expressas, fábricas, ou quando negociam territórios, aniquilando comunidades inteiras, para se construírem estádios e complexos esportivos para Copas do Mundo ou Olimpíadas? Quem são os que comumente defendem os monumentos ou as comunidades quando isso acontece?

Quase 2 anos após o incêndio do Museu Nacional, no Rio de Janeiro, o que têm a dizer sobre o incêndio do Museu de História Natural da UFMG, ocorrido após os governos criarem tantas medidas de gestão de risco?

incendio-museu
Fonte: G1. Foto: Divulgação/Cobom.

Lembrando de Lunatcharsky e da política pública soviética para monumentos e o patrimônio artístico, histórico e a própria memória, penso que o abismo que separa as diversas opiniões – sempre muito bem fundamentadas – daqueles que bradam pela prisão dos “vândalos”, ou que gritam “deixa quebrar” é, no final das contas, a grande ausência de políticas públicas de patrimônio, artes e memória voltadas para a reparação histórica, para a escuta de segmentos sociais historicamente oprimidos e explorados.

Uma sociedade que não conhece sua história, que não usa seus monumentos e patrimônio para fins educativos, que não pensa a longo prazo sua relação com a memória e a produção cultural, não tem proposta nem para um momento de insurreição, nem para momentos de normalidade.

O que seria ter um projeto social de patrimônio e memória? Já estivemos no caminho certo para começar a definí-lo.

Em momentos de comoção popular, devemos  compreender e incorporar as críticas do povo. Quebrou? Podemos até deixar quebrar! A ação popular é também fato histórico! É manifestação do poder popular reprimido!

Em tempos “normais” é obrigação dialogar, fazer autocrítica, preservar o antigo para educar e fomentar a produção do novo, um novo emancipador e transformador, a partir de valores coletivos e socialmente construídos.

Entre botar no museu e deixar quebrar, penso que devemos fazer o exercício de escutar, de promover a produção cultural popular e de, em longo prazo, criar uma cultura de participação da sociedade na definição do patrimônio, na construção dos seus referenciais culturais e de constante discussão sobre o que é e o que deve deixar de ser a memória de um povo tão plural, tão diverso. Sempre a partir de princípios igualitários, democráticos e emancipadores. Ah! Pensar que já tivemos uma política pública que se chamava “Cultura Viva”…

Bibliografia mencionada: 

LUNASCHARSKY, A. As artes plásticas e a política na URSS. Lisboa: Estampa, 1975.

Leia também “Ciranda dos monumentos em Buenos Aires”, o primeiro artigo desta série em  https://exporvisoes.com/2020/06/15/ciranda-dos-monumentos-em-buenos-aires/ 

18 respostas para “Monumentos e insurreição popular: põe no museu ou deixa quebrar?”

  1. Avatar de Ana Paula Sampaio Caldeira
    Ana Paula Sampaio Caldeira

    Parabéns pelos textos que estão sendo publicados aqui. Tenho acompanhado e gostado bastante. Vou indicar aos meus alunos.

    1. Avatar de Exporvisões

      Que ótimo, Ana Paula! Ficamos muito felizes com esse retorno.

  2. Avatar de Manuzinha Carioca
    Manuzinha Carioca

    Parabéns pelo texto, Fernando. Parabéns às responsáveis pelo ExporVisões. Mais do que necessário um espaço como este para ótimos e enriquecedores debates. Obrigado.

    1. Avatar de Exporvisões

      Obrigada, Márcio querido.
      Demoramos um tempo para saber que a Manuzinha Carioca era você. Rs. Beijos

  3. Avatar de Leo Neves
    Leo Neves

    Parabens Fernanda!
    Ótimo texto!

  4. […] post: Manuel de Araújo Porto Alegre e a Música no Brasil Império: ideias e projetosNext post: Monumentos e insurreição popular: põe no museu ou deixa quebrar? Postado 1 semana atrás 6 Comentários por […]

  5. Avatar de Viviene Lozi
    Viviene Lozi

    Parabéns!
    Fernanda, ótimo texto e reflexão apresentada.
    Vou divulgar nas minhas redes sociais e grupos.

  6. Avatar de Richard José
    Richard José

    Texto direto, objeto, e sem perder a capacidade do fazer refletir. O pensamento de que a tratativa com os monumentos em uma insurreição popular também é o fazer história, e a ideia de que deve-se escutar para definir políticas de patrimônio público são fundamentais. Parabéns Fernanda Castro.

    1. Avatar de Fernanda Castro
      Fernanda Castro

      Obrigada!
      Já está na hora de tomarmos a construção em nossas mãos, não é mesmo?
      As grandes transformações históricas são construídas com o tempo, mas insurreições são marcos importantes do protagonismo popular!

  7. Avatar de Marcelo Abreu
    Marcelo Abreu

    Excelente lembrança, Fernanda Castro. E as relações que fez com a ação do poder publico que frequentemente remove ou abandona monumentos, espaços formais da memória, e, ao mesmo tempo, também arrasa territórios, igualmente recobertos de lembranças, para dar lugar a empreedimentos ajustados à produção capitalista do espaço.

    1. Avatar de Fernanda Castro
      Fernanda Castro

      Obrigada, Marcelo!
      É difícil reconhecer o povo como motor das políticas públicas, mas talvez seja ainda mais difícil que se assuma o Estado como destruidor delas, não é mesmo?

  8. Avatar de Fernanda Castro
    Fernanda Castro

    Obrigada a todos pelas considerações!
    Fico feliz em poder refletir junto!

  9. […] Esse livro nos ajuda a pensar uma série de questões teóricas em relação ao patrimônio e suas disputas. Andreas Huyssen (2001) provoca em relação à primeira delas: nada melhor para provocar o esquecimento do que um monumento. De fato, ao pensar os usos da cidade, podemos refletir sobre nossa própria relação com a estatutária. Quantas conhecemos? Quais produzem sentido? Como elas são apropriadas na dinâmica cotidiana? A estátua da cidadezinha do país do norte nunca foi notada e passou a ter importância na medida em que foi percebida uma suposta “falta”. Ou seja, foi o processo de denúncia da depredação ou do roubo que desencadeou o interesse. Em nenhum momento, sabemos quem era o homem ou qualquer indício de sua memória, tampouco sobre o processo de construção e manutenção da mesma na praça principal. (ver Monumentos e insurreição popular: põe no museu ou deixa quebrar? […]

  10. […] “Monumentos e insurreição popular: põe no museu ou deixa quebrar” por Fernanda Castro […]

  11. […] “Monumentos e insurreição popular: põe no museu ou deixa quebrar” por Fernanda Castro […]

  12. […] “Monumentos e insurreição popular: põe no museu ou deixa quebrar” por Fernanda Castro https://exporvisoes.com/2020/06/20/monumentos-e-insurreicao-popular-poe-no-museu-ou-deixa-quebrar/ “Por uma ciranda sem degolas e esquartejamentos” por Márcio Magalhães de Andrade […]

Deixe uma resposta para ExporvisõesCancelar resposta

Esse site utiliza o Akismet para reduzir spam. Aprenda como seus dados de comentários são processados.

I'm Veronica

Welcome to Craftfully, my cozy corner of the internet dedicated to all things homemade and delightful. Here, I invite you to join me on a journey of creativity, craftsmanship, and all things handmade with a touch of love. Let's get crafty!

Let's connect

Descubra mais sobre EXPORVISÕES: miradas afetivas sobre museus, patrimônios e afins

Assine agora mesmo para continuar lendo e ter acesso ao arquivo completo.

Continue reading