Artes-manuais: um ativismo com as mãos

por Paula Martins

 

Formei-me em Letras em 1995. Como bell hooks, nunca quis ser professora; queria ser escritora. Mas a vida dá as suas voltas e ocupei o espaço da sala de aula apaixonada e ininterruptamente até 2013, quando me vi cercada por práticas que, em sua maioria, reproduziam rituais de controle e cuja essência era a dominação e o exercício injusto do poder. Estava infeliz.

E me perguntava: “Como um indivíduo infeliz pode ajudar o outro?” Esgotada, decidi que, depois de 18 anos, era hora de traçar um novo caminho. Para isso, precisei de muita coragem para assumir para mim mesma que aquele lugar, do modo como estava posto, não era mais o meu já que não havia espaço para o encantamento, para o questionamento e para a possibilidade.

Voltei-me para o que era caro naquele momento – minha família e minha casa. E, no ambiente doméstico, redescobri que as mãos não são feitas somente para corrigir textos e provas ou elaborar material. Redescobri que, com elas, poderia mudar a minha própria história – me rendi à encadernação artesanal.

Novos formatos, texturas e costuras foram decisivos para eu recuperar a capacidade de afetar e me sentir afetada. Após três anos longe da sala de aula, entendi que era o momento de me abrir para conhecer o que ainda não sabia. Compreender como as mãos se tornaram decisivas para pensar e repensar o meu estar no mundo, para transgredir.

O desafio que me propus era que qualquer coisa, naquele momento, para fazer sentido para mim, deveria aumentar a potência do corpo de afetar e ser afetado pelo que me cerca. Aumentar essa potência de sentir para também aumentar a capacidade de pensar e existir. De estar presente.

Matriculei-me no Curso de Pós-Graduação em Artes-Manuais para a Educação, da querida Nina Veiga, e, em maio/2017, pude sentir no corpo aquilo que Deleuze (1925-1995) defendeu ao longo de sua obra: quando entramos em um dispositivo, nos situamos no meio de uma relação de poder e saber da qual é impossível nos livrar.

Assisti à fala entusiasmada de um grupo de mulheres que me apresentaram algo que nem sabia que existia: um ativismo feito pelas mãos. “Bonequeiras sem Fronteiras” buscavam ser úteis e recorriam a uma nova linguagem – a da possibilidade – para fazer do lugar que habitam um lugar melhor. Sem armas, sem raiva, sem gritos para dizer da sua dor. Pelo contrário, usavam objetos inofensivos como agulhas, linhas e tecidos para agir intencionalmente na luta por uma sociedade menos desigual. Para resistir efetivamente.

Andréa Cordeiro, professora e idealizadora do grupo, contou-nos que acompanhou estarrecida as primeiras notícias acerca da desocupação violenta e covarde, em Pinheirinhos, em São José dos Campos (SP), no início de 2012, de mais de seis mil famílias que ocupavam o terreno há oito anos.

Impactada com as imagens das crianças fugindo com seus pais das ações violentas dos policiais e dos brinquedos debaixo dos escombros em uma cidade que não era a sua, Andréa se colocou em risco – chamou seis amigas para costurar bonecos e bonecas para serem distribuídos às crianças de Pinheirinhos, ao mesmo tempo em que organizou uma ação pela internet. Em poucos dias, mais interessados em agir se juntaram ao grupo.

Mulheres unidas em uma postura decidida frente ao mundo para lutar contra o forte discurso fatalista usando o que já tinham – as mãos. Em um mês, foram mais de 300 bonecos e bonecas costurados por mãos anônimas.

Mãos que estavam naquilo que faziam. Com formações diferentes (e até sem formação nenhuma), me fizeram pensar a educação em vinculação com o corpo, a utopia, as diferentes formas de olhar, de comunicar e de habitar o real pela via do fazer manual.

Mulheres que tinham mais trabalho do que tempo de fazer. Guardavam muitas impressões de si mesmas em relação a esse fazer manual e ponderavam como o trabalho com as mãos tinha um poder de afetar a si mesmo. Algumas nem sabiam costurar e relataram, nesse módulo da pós-graduação, como a arte-manual trouxe de volta o estar no mundo ao deixarem os remédios de lado e retomarem o gosto pelas pessoas e pela vida.

Mulheres que se redescobriram na relação com as próprias mãos, fundamentais para que se apropriassem de si, compartilhassem memórias, afetos e, ao mesmo tempo, (re)escrevessem sua própria história.

Em comum, sentiam-se importantes por fazerem um trabalho manual dedicado ao outro. Um fazer que encontrou no costurar bonecos e bonecas uma nova linguagem – a de experiências, de afeto e de vínculo. Além de criar a possibilidade de (re)começo.

Produtoras de conteúdo, com pensamento próprio, essas mulheres juntas não pensavam. Imaginavam e faziam. Sujeitos éticos e capazes de promover a mudança quando atribuíram novo significado às artes-manuais: o de resistência, como uma prática crítica e democrática.

Essas mulheres me mostraram que, cuidadosamente, ao fazerem com as mãos, um a um, uma a uma, os bonecos e as bonecas, no intuito de dar esperança a quem precisa há, nesse movimento, um gesto de rebeldia, uma abertura, um modo de continuar vivo, de prosseguir.

Essas mulheres, com sua vontade amorosa de mudar o mundo, me fizeram sentir o que as artes-manuais provocam: mostrar a beleza do tempo que as coisas levam até o estado de prontidão. E, talvez, o mais bonito de tudo isso foi perceber, em poucas horas, como o fazer com as mãos modificou também a vida de cada uma delas. Resgatou, a cada uma, em seu tempo, a inteireza e a grandeza de alma.

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Saiba Mais!

“Bonequeiras Sem Fronteiras – inaugurando o fazer manual como um modo de resistência ou Sentir é mais que saber”, de Paula Martins Costa: https://drive.google.com/drive/folders/1F1keie8ioNHhpbbQONtjOmwkNFai-Yyr?usp=sharing

[cite]

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