Livro de Joaquim Manuel de Macedo ensinava princípios de moral e religião às moças do ensino primário, no século XIX.

por Aline Montenegro Magalhães

Assistimos recentemente a diversos movimentos de contestação a estátuas de personalidades históricas com biografias marcadas pela atuação violenta e opressora, no passado colonial e escravista. Como esse passado ainda não foi superado, e torna-se ainda mais presente em momentos de crise, como a pandemia que estamos vivendo, o questionamento a determinadas homenagens tornam-se ainda mais contundentes. Haja vista o fogo ateado em Borba Gato, em São Paulo, e mais recentemente, em Pedro Álvares Cabral, no Rio de Janeiro.

Todo esse movimento tem me feito pensar sobre a pedagogia desses monumentos. Que valores e ideais deveriam ensinar aos cidadãos? Imagens em pedra e bronze, na sua avassaladora maioria de homens brancos ligados ao processo colonizador e ao Estado? Certamente eram valores e ideais fundamentados na dominação masculina do espaço público, o que ajuda a explicar a quase ausência de monumentos a mulheres até hoje. Afinal, como nos contou a professora Thais Waldman, no curso “Uma história do Brasil”, realizado recentemente pelo Museu Paulista da USP, em pesquisa realizada pelo Instituto Pólis, dos 367 monumentos da cidade de São Paulo 169 são de homens e apenas 24 de mulheres. Então, se as mulheres atualmente têm pouca representatividade nas cidades, imaginem no século XIX?

Mas, em 1878, o escritor Joaquim Manuel de Macedo publicou um panteão feminino no livro didático Mulheres Célebres, aprovado pelo Imperador d. Pedro II para a leitura nas escolas de instrução primária de moças, do Município da Corte. Nessas páginas as estudantes teriam os exemplos e as lições a serem seguidos, inspirados em biografias de mulheres do Brasil e do mundo.

Macedo, embora considerasse as mulheres pessoas de “estrito e acanhado horizonte social”, valorizava seu papel como mães de família e educadoras das futuras gerações. O exemplo, para o autor, era o “conselho prático e a explicação viva”, que deveria começar pela professora “sempre delicada e educada com suas alunas”. Assim, o livro reúne 23 notícias biográficas de mulheres. Entre as personalidades estão: Amália Sieveking, Santa Clotilde, Cornélia mãe dos Graco, D. Maria Joaquina Dorothea de Seixas (a Marília de Dirceu do poeta inconfidente Thomaz Antonio Gonzaga); rainha Isabel da Inglaterra, Joana D’Arc e as Espartanas. A caridade, o amor à Pátria, a dedicação aos filhos e à família, a fidelidade, assim como a propagação da fé cristã, da amizade, do amor e respeito ao próximo foram as atitudes consideradas louváveis dessas mulheres.

Entre as mulheres vistas como celebridades históricas, dez eram ricas e teriam sido “caridosas”, seguindo os ensinamentos da fé católica. Foi o caso da alemã Amália Sieveking, por exemplo, sobre quem Macedo escreveu: (…) era rica e ajudava aos pobres (…) nunca houve quem melhor amasse a Deus do que a abnegada Amalia Sieveking (…). Toda senhora que puder igualar-se com Amalia Sieveking terá nome perpetuamente abençoado na memória dos homens e sua alma coroada pelo prêmio supremo de Deus”. Exemplos como esse dizem muito sobre a classe social das leitoras do livro, das moças que tinham acesso à educação primária.

Mais uma vez com o uso de exemplos, Macedo aproveitou-se de algumas trajetórias femininas para sublinhar as condutas condenáveis. Foi o caso da rainha Isabel da Inglaterra, que, embora tenha amado a pátria e se empenhado para seu desenvolvimento, possuía, segundo o autor, os graves defeitos da vaidade extrema e da ostentação.

Ao falar de Joana D’Arc, o autor orienta as meninas a não ousarem como ousou a guerreira francesa: “(…) ela foi o anjo salvador da Pátria, mas não deve ser exemplo cuja imitação se aconselhe. Espírito guerreiro perdoado por ter sido fruto de revelação divina, por isso não deve ser imitado”. Nessa direção, nenhuma mulher poderia ter a pretensão de ter sido escolhida por Deus para fazer o que Joana D’Arc fez ao lutar pela França contra a Inglaterra na Guerra dos Cem Anos. Meter-se em combates militares era coisa para os homens e condenável para as mulheres. Por essa razão, a referência a Joana D’Arc era mais para despertar a admiração do que para ser imitado.

Quando comenta a trajetória de Damiana da Cunha, uma índia descendente dos Cayapós de Goiás, Macedo demonstra sua concepção de nação, segundo a qual os indígenas só eram considerados como parte, quando abandonavam seus costumes e sua cultura, “civilizando-se” sob a luz da religião católica. Isso porque Damiana viveu no século XVIII, casou-se com um português e converteu-se ao catolicismo. Ao servir de intermediária nos incontáveis conflitos entre seu povo e os portugueses, foi responsável pela conversão de vários índios próximos. Sobre a índia convertida, o autor considerou: “(…) nascida nas trevas da selva (…), amamentada aos seios da civilização e da fé católica, Damiana da Cunha foi exemplo de virtudes e de santa dedicação”. Essa é a única alusão à mulher indígena, sendo notada a total ausência da mulher negra nas páginas do livro.

Com esses ensinamentos, Mulheres célebres reafirmava os valores de uma sociedade patriarcal e hierarquizada, na qual o papel da mulher deveria ser restrito ao ambiente doméstico e religioso. Será que uma leitura contemporânea desse livro faria alguém desejar queimar algumas de suas páginas? Vale a leitura e a reflexão.

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