Por linhas e nós. Miradas para o vestido de Maria Bonita do Museu Histórico Nacional

por Ana Lourdes Costa

Ao longo de quase três anos, estive em contato com um vestido de Maria Bonita, mulher, nordestina, sertaneja, ao mesmo tempo personagem histórica e mitificada como símbolo do Cangaço do século XX. Cáqui, enfeitado de soutage vermelho (que também recebe o nome de galão ou sianinha), feito em sarja e algodão, com palas que dão entendimento de bolsos e um zíper frontal, bem ali, onde termina o pescoço e começa o colo. Tem furinhos que ainda não se sabe por quais motivos foram causados, assim como algumas manchas, que, ainda não foram examinadas. Aliás, essas marcas, feitas enquanto Maria estava viva, e mesmo depois de sua morte, quando o vestido percorreu outros caminhos e pode ter coberto outros corpos, mudando sentidos e valores, , não deixam de ser tipos de memória, como escreveu Stallybrass. Ou seja, assim como as roupas são suportes materiais de memórias, suas marcas, novamente materiais, passam a ser um tipo de memória, que muitas vezes não conseguimos interpretar, mas apenas ter um vislumbre, um palpite de criatividade. Mas o que é a memória se não um vislumbre, uma representação, um ato criativo?

Ainda sobre a(s) materialidade(s) desse vestido, talvez (e digo talvez, porque já me encantei de tão diferentes formas por esse vestido que essas seriam as mais recentes), o que mais me encanta são os soutages e seu zíper. Mas aqui, vou dar uma atenção especial ao zíper.

Na década de 1930, quando Maria Bonita fez, ou mandou fazer seu vestido, uma roupa com todos os contornos da estética do Cangaço, o zíper era um equipamento ainda muito pouco usado nas roupas civis, principalmente no Brasil. Para se ter uma ideia, somente em 1940 é que a Sears (antiga loja estadunidense de departamentos), responsável por sua popularização, começa a colocar zíper nas roupas que vendia. Por isso, fiquei a refletir sobre a vida social desse zíper, por qual indústria foi fabricado, em qual país. Que depois de fabricado, foi colocado junto às mercadorias de um mascate, ou mesmo entregue por uma coiteira ou coiteiro¹ à Maria Bonita. E mais, me coloquei a refletir sobre como Maria Bonita tomou conhecimento desse equipamento, então, muito arrojado, e, que, talvez, por isso mesmo, tenha decidido usá-lo em seu vestido. Aliás, dentre os vestidos do Cangaço dos quais temos registro, esse, é o único que leva um zíper em seu feitio.

Vestido da Maria Bonita. Acervo do MHN. Foto: José Caldas

Vestido de Maria Bonita. Acervo do Museu Histórico Nacional. Foto: Bruno Chiossi

Ao pensar sobre uma possível trajetória social do zíper do vestido de Maria Bonita, percebo que não posso deixar passar uma parte interessante da vida social do vestido, dentro do próprio Museu Histórico Nacional. É que tenho verdadeira paixão por histórias de objetos musealizados, histórias inusitadas, diferentes e que me encantem². É certo que a vida social, a biografia cultural de objetos musealizados, sejam, quase todas elas, interessantes. Mas tenho certeza, que umas se sobressaem a outras. Certo é que na década de 1980, o pesquisador do Cangaço, Frederico Pernambucano de Mello, entra em contato com o Museu Histórico Nacional e diz: “Olá, Museu. Você tem um vestido de Maria Bonita.” Ao que o Museu responde: “Temos?”. No que Mello informa: “Sim, o vestido é cáqui, tem soutages, bolsos, um zíper.”. Em algum tempo, o vestido foi localizado. Estava em uma sala, junto com outros objetos selecionados para o descarte. Tirado de lá, volta a ser musealizado, e entra, alguns anos depois, para a exposição Expansão Ordem e Defesa, já na década de 1990.

Mas como o vestido de Maria Bonita chega ao MHN? É que no dia do assassinato de Maria Bonita, ela estava com esse vestido de domingueira (festas organizadas pelo Cangaço) em seu bornal³, mas dele foi retirado pelo Aspirante Francisco Ferreira de Mello, que comandou a vanguarda da volante que matou Maria Bonita, e entregue à Melchiades da Rocha, primeiro jornalista da Região Sudeste a chegar no local. Nesse momento, analisamos que essa, foi uma desapropriação, pois fora retirado dos bens de Maria Bonita, sem seu consentimento, sem sua autorização. Nesse dia, é como se o vestido de Maria Bonita virasse um troféu, prova do feito, não só do Estado, que caçava os bandos do Cangaço, mas também como prova da “macheza” e “competência” do Aspirante Mello. Depois disso, Melchiades da Rocha, conforme contou a Frederico Pernambucano de Mello, naqueles distantes anos 1980, o deu de presente à atriz Nádia Maria, comediante recifense que participou, entre outros, do filme “O primo do Cangaceiro”, de 1955, que por sua vez, doou ao Museu Histórico Nacional.

Tentamos localizar esse filme, pois nossa hipótese, é que Nádia Maria o tenha usado em cena (será? talvez?). Mas depois de muita procura, acabamos por aceitar que não localizaríamos o filme, nem nas plataformas de compartilhamento de vídeos, como o YouTube, nem na Cinemateca Brasileira, ainda mais depois do recente incêndio sofrido. Problemas pelos quais passa a pesquisa e o patrimônio cultural brasileiro, num cenário político e social tão devastador como o que temos enfrentado atualmente.

O fato de não conseguirmos localizar o filme nos leva a outros desdobramentos: como são tratadas as questões de gênero, enquanto categoria de análise nos museus brasileiros, no caso, no Museu Histórico Nacional? Mas antes, me lembro de Ingold, que apresenta uma outra forma de entender um objeto a partir de fios, e não de redes, quando afirma que “… a coisa tem o caráter não de uma entidade fechada para o exterior, que se situa no e contra o mundo, mas de um nó cujos fios constituintes, longe de estarem nele contidos, deixam rastros e são capturados por outros fios noutros nós”. Lembrando de Ingold, percebo que essa escrita é, na verdade, uma captura de fios e de nós, que levam a uma coisa, e que essa coisa pode trazer mais um nó, ou uma linha, e não, necessariamente uma conexão. Penso numa analogia: que o vestido de Maria seja o nó, não no sentido de coisa que atrapalha, difícil de ser desfeito, mas no sentido de surgimento mesmo, no sentido “ingoldiano”, de um nó do qual você vai puxando fios e mais fios, e outros fios, e muitos fios.

Voltando à linha, ou ao fio, que puxei acerca das questões de gênero, algo que me chamou atenção, ao longo da minha pesquisa de mestrado em museologia, realizado na UNIRIO/MAST, é que, no MHN, o vestido, evoca muito mais o Cangaço, enquanto movimento masculino, do que a própria cangaceira e o que representou sua entrada e, depois dela, a entrada de cerca de quarenta outras mulheres, nesse espaço sexista, misógino, machista, que era o Cangaço. Ainda não foram, no MHN, realizadas pesquisas ou outras proposituras que, a partir do vestido de Maria Bonita, deem conta de questões que envolvam gênero, enquanto uma análise de um sistema opressor, que se impõe sobre corpos femininos. Como foi a vida dessas mulheres ao furarem a bolha de um Cangaço eivado de valores patriarcais, reflexo, ele mesmo, de uma sociedade estruturada em códigos sociais coloniais, patriarcais, machistas, racistas? Como essas mulheres nordestinas, sertanejas, enfrentaram, aos seus jeitos, esse espaço em que, acreditavam os cangaceiros, eram causa de morte, pois após o sexo, deixavam o corpo desses homens desprotegidos? Isso apenas para citar uma das tantas crenças sobre mulheres e Cangaço. Por isso, gosto de refletir sobre como as micro revoluções, realizadas tanto por Maria Bonita, quanto pelas outras mulheres cangaceiras, nesse espaço masculino do Cangaço. Essa reflexão, sobre as micro revoluções, é proposta por Jailma dos Santos Pedreira Moreira, em seu livro Sob a luz de Lampião: Maria Bonita e o movimento da subjetividade de mulheres sertanejas. Nele, Jailma nos atenta a “..lembrar das revoluções moleculares, das Marias de nossa rua, das mulheres da seca, tecendo um outro agora no cotidiano do sertão.” Poderia aqui fazer tantas citações, para puxar outros tantos fios, sobre esse outro nó, que é a visibilidade das questões de gênero a partir do vestido de Maria Bonita. Mas me atenho a esse fio, a essa citação, que, para além do gosto pelo tom da escrita, me lembra, mais uma vez, entre outras tantas, que o vestido musealizado de Maria Bonita é uma potência evocadora de mulheres.

¹Nome dado às pessoas que escondiam os cangaceiros para protegê-los, muitas vezes acolhendo-os em suas próprias casas.

²Sobre outra história inusitada, sobre a qual que tomei conhecimento quando trabalhava no Museu Histórico Nacional, acessar a Revista Museália, pois lá, consta o artigo Fazedor de Barcos e Achados. https://www.museus.gov.br/wp-content/uploads/2011/04/musealia.pdf

³Tipo de bolsa usada pelas cangaceiras e cangaceiros, na qual guardavam de munição à roupas.

Refêrencias:

INGOLD, Tim.Trazendo as coisas de volta à vida: emaranhados criativos num mundo de materiais. Horizontes Antropológicos, Porto Alegre, ano 18, n. 37, p. 25-44, jan./jun. 201.

MOREIRA, Jailma dos Santos Pedreira. Sob a luz de lampião Maria Bonita e o movimento da subjetividade de mulheres sertanejas. Salvador: EDUNEB, 2016.

STALLYBRASS, Peter. O casaco de Marx: roupas, memória, dor. Belo Horizonte: Autêntica, 2008.

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