A escuta sensível e os objetos museológicos: uma mediação cultural lúdica através do aplicativo Jogo da Memória do Museu das Bandeiras
por Raísa Cavalcante
Cada geração tem direito a reinterpretar sua herança histórica, por isso o conhecimento histórico é essencial para a formação da consciência política indivíduo (BARBOSA, 2008, p.13).
Em tempos de ensino remoto e visitas virtuais, o celular tornou-se um objeto gerador da sala de aula e de outras instituições culturais. Se antes esse aparelho era temido pelo professor e desligado nos museus, agora ele se torna essencial na comunicação e no processo de ensino aprendizagem de escolas e instituições culturais, principalmente no ciberespaço. Foi durante o ano de 2020, logo no início do isolamento social, por conta da pandemia COVID-19, que o Jogo da Memória do Museu das Bandeiras¹ foi atualizado em formato de aplicativo para android.² Segundo o filósofo Pierre Lévy (1996), atualização é criação, invenção de uma forma a partir de uma configuração dinâmica de forças e finalidades permitindo a solução de um problema. Ou seja, a atualização permitiu ao jogo físico continuar existindo em outra realidade, a digital, expandido seu uso e suas formas de mediação cultural.
A segunda atualização do Jogo da Memória do Museu das Bandeiras permitiu um aprimoramento dos recursos audiovisuais em busca de uma maior imersão do jogador na atmosfera do jogo e, consequentemente, no museu e na aura dos objetos que ele traz. Além de uma acessibilidade lúdica do aplicativo através dos sons, a atualização trouxe links diretos para o site do Museu das Bandeiras e Plataforma Tainacan³, conexões no ciberespaço de instituições de pesquisa e cultura. Essa nova atualização foi possível através de recursos da Lei Aldir Blanc do Estado de Goiás, por meio do edital 005/2020, em que profissionais de diversas áreas como licenciatura, artes, design, programação e cinema, foram remunerados e exerceram seu trabalho na atualização do aplicativo de forma digna e valorizada. Sendo um jogo transdisciplinar pode ser utilizado como recurso pedagógico em qualquer componente curricular da educação básica, e também na educação não formal, afinal,
[…] os museus são ambientes de formação, e seu uso proporciona reflexões sobre os saberes e as estratégias que serão mobilizados, rompendo com limitações conceituais e práticas da educação. São ambientes que proporcionam experiências e trocas diferentes das que acontecem em uma situação relacional em sala de aula. Os museus constroem uma narrativa visual por meio de cenografias com objetos, totens multimídias, legendas, focos de luz e espaços vazios. Nesses ambientes, os sentidos são despertados pela relação corpórea com as coisas no mundo (BRAGA, 2015, p. 55).
A atualização mais recente foi concluída em agosto de 2021 e, até o momento, conta com setenta e sete usuários.
A utilização do jogo pelo celular permite que o jogador, estudante ou visitante do museu tenham acesso ao ciberespaço da cultura, pesquisa, educação e patrimônio, uma vez que o jogo possui links diretos para os sites do Museu das Bandeiras e da Plataforma Tainacan. Mesmo sem estar fisicamente nessas instituições, o jogador tem acesso democrático e lúdico ao conhecimento através do aplicativo, podendo escutar o canto da rolinha “fogo apagou” (Columbina squamatta) na paisagem sonora? da cidade de Goiás logo na tela inicial do jogo. Essa paisagem sonora preenche o som ambiente e nos remete ao gramado na entrada do Museu, árvores e Chafariz de Cauda, transportando o jogador/ouvinte, ainda que de maneira virtual, para esse espaço. Além desse som ambiente, a atualização traz também narrativas sonoras de objetos do acervo do museu, como por exemplo uma escarradeira, uma bateia em uso ou mesmo uma sela feminina, sons que podem ser acessados através do ícone ‘conhecendo as cartas’. Nesse ícone encontram se também áudio-descrições das cartas, construídas a partir de textos disponíveis na Plataforma Tainacan, contendo informações sobre cada objeto, de onde vem, quem doou, em que ano entrou no museu e outras curiosidades.
A narração das áudio-descrições aproxima o jogador/estudante/ouvinte do museu e também de seus próprios objetos pessoais, visto que podemos nos atentar para a cultura material que preenche o acervo do nosso cotidiano enquanto atores sociais, cidadãos históricos, colecionadores ou possuidores de objetos comuns. Quantas vezes vimos as crianças que visitam o museu fazerem associações do acervo com seus objetos cotidianos, como presenciamos em uma visita durante o estágio supervisionado, com expressões do tipo ‘Tem uma bateia assim’ ou ‘um baú parecido com esse guardado lá em casa…’?
Concordando novamente com Lévy (1996), é nítido que o ensino e a educação escolar também passaram por atualizações nesta pandemia, portanto, devemos repensar cada vez mais as propostas pedagógicas na atualidade. A atualização do ensino escolar presencial para o ensino escolar remoto levou a escola para o Google e redes sociais, fazendo com que seus interesses se aproximassem. O aplicativo do Jogo da Memória MUBAN pode ser considerado um recurso pedagógico atual para a educação contemporânea, justamente por trazer a atenção aos ouvidos e ao sentido da audição, permitindo a fruição estética de sons e contextos sócio-históricos dos objetos museológicos a partir de um celular. Afinal, ao ouvir um pigarro masculino no desfecho da narrativa sonora do objeto Urna Eleitoral, escutamos também o silêncio das mulheres e o rito opressor da sociedade patriarcal da época, quem tudo decidia.
Além de ser um objeto mediador de cultura em tempos de ensino remoto, o aplicativo também tem o intuito de atender a uma acessibilidade lúdica ao Museu das Bandeiras e a Plataforma Tainacan. A metodologia para essa acessibilidade é uma escuta sensível e atenta despertada pelas narrativas sonoras. Como ouvir um objeto? Qual som vem junto com a sua história? Quais histórias eles contam dentro da ‘História’? Seria apenas o som desse objeto em uso, ou, ainda, o que o poeta Francis Ponge (1996) aponta quando diz que “a relação do homem com o objeto não é de todo apenas de posse ou de uso. Não, seria demasiado simples, é muito pior”. Com o som buscamos trazer materialidade para o objeto, afinal os sons são vibrações que ocupam tridimensionalmente o espaço e tempo presentes ao redor do jogador. Segundo o historiador brasileiro Ramos (2000, p.9) podemos compreender o
[…] tempo a partir dos objetos, objetos a partir do tempo — esta é a proposta, que pressupõe inversões e superações a respeito da relação entre sujeito e objeto. Longe de ser uma mera fabricação do sujeito, o objeto faz parte da subjetividade. É preciso entender que a “mercadoria”, por exemplo, não é sinônimo de objeto, mas apenas uma maneira de sê-lo, decerto a maneira mais pobre de sê-lo, apesar de parecer outra coisa, até porque aí a aparência é (quase) tudo. Daí a imprescindível necessidade de atentar-se aos modos pelos quais a sociedade de consumo interage com museus e outras formas de composição da memória.
Associada à ideia de tempo através dos objetos, buscamos na escuta sensível do pesquisador francês Réne Barbier (1939-2017), um instrumento metodológico para investigar a acessibilidade lúdica trazido pelo jogo. A escuta sensível é uma metodologia que se apoia principalmente na empatia. Segundo Barbier (1998) o pesquisador deve saber sentir o universo afetivo, imaginário e cognitivo do outro para poder compreender de dentro de suas atitudes, comportamentos e sistemas de ideias, de valores, símbolos e mitos. A proposta inicial do jogo é justamente despertar uma atenção auditiva para o acervo do Museu das Bandeiras, uma escuta sensível dos objetos e suas histórias, seus sons e seus silêncios, seus usos e desusos.
¹O Jogo da memória em formato físico foi realizado pela autora em 2019 como objeto de pesquisa do Trabalho de Conclusão de curso da Licenciatura em Artes Visuais do IFG/Campus Cidade de Goiás. https://repositorio.ifg.edu.br/handle/prefix/657 ²O jogo pode ser baixado pela plataforma Google Play, através do link <https://play.google.com/store/apps/details?id=ilhapixel.muban_memo> ³O Tainacan é uma plataforma para a criação de coleções digitais na internet, é um software livre brasileiro desenvolvido pelo Laboratório de Inteligência de Redes da Universidade de Brasília, com apoio da Universidade Federal de Goiás, Instituo Brasileiro de Informação em Ciência e Tecnologia e do Instituto Brasileiro de Museus e pode ser acessada pelo link < https://tainacan.org/>. ?Segundo o músico e pesquisador canadense R. Murray Schafer, que cunhou o termo na década 1960, paisagem sonora pode ser definida como “o campo sonoro completo onde quer que estejamos. (…) O ambiente ao meu redor enquanto escrevo é uma paisagem sonora” (2009, p.14).PARA SABER MAIS :
BARBIER, Renné. A escuta sensível na abordagem transversal. In: BARBOSA, Joaquim (Coord.). Multireferencialidade nas Ciências e na Educação. São Carlos: Ed. UFSCar, 1998.
BARBOSA, Ana Mae (Org.). Ensino de arte: memória e história. São Paulo: Perspectiva, 2008.
BRAGA, Jezulino Lúcia Mendes. Discutindo o ensino de História mediado pelos museus: experiências docentes no Museu de Artes e Ofícios – BH. Revista do Lhiste, n. 1, v. 1, p. 30-56, jan/jun., 2015. Disponível em: <https://seer.ufrgs.br/revistadolhiste/article/view/56148>. Acesso em: 01/08/2021.
BRASIL. Secretaria de Educação Fundamental. Parâmetros Curriculares Nacionais: arte/Secretaria de Educação Fundamental. Brasília: MEC/SEF, 1998.
CAVALCANTE, Raisa. O Jogo da Memória como objeto mediador do acervo do Museu das Bandeiras. Trabalho de conclusão de curso de Licenciatura em Artes Visuais no Instituto Federal de Goiás, campus Cidade de Goiás, 2020. Disponível em <https://repositorio.ifg.edu.br/handle/prefix/657>
CUNHA, Fernanda Pereira da (Orgs). A abordagem triangular no ensino das artes e culturas visuais. São Paulo: Cortez, 2010.
LUCKESI, Cipriano. Ludicidade e atividades lúdicas: uma abordagem a partir da experiência interna. Disponível em: www.luckesi.com.br. Acesso:. 2006.
PONGE, Francis. Alguns poemas: antologia poética. Lisboa: Cotovia, 1996. RAMOS, Francisco Régis Lopes. Em nome do objeto: museu, memória e ensino de História. Livro eletrônico, Fortaleza: Imprensa Universitária, 2020. Disponível em <http://repositorio.ufc.br/handle/riufc/56706 >
SCHAFFER, R. Murray. Educação Sonora: 100 exercícios de escuta e criação de sons. São Paulo: Melhoramentos, 2009.
SPONHOLZ, Simone. O professor mediador. Artigo publicado na Revista Ciências Jurídicas e Sociais da UNIPAR, v.6, n.2, p. 205-219, jul-dez 2003.
Youtube. Jogos Museais. Narrativas Sonoras do Jogo da Memória do Museu das Bandeiras. 2021. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=3K7xmjXJyWI > Acesso em setembro de 2021.
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Que importante esse texto e a divulgação de jogos com essa reflexividade. Parabéns, Raisa!
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