Por Solange Ferraz de Lima
Desde 2013, quando do fechamento do edifício-monumento para diagnóstico, projeto e obras de restauro e modernização, a equipe do Museu Paulista manteve suas ações de pesquisa, ensino e extensão. Momentos desafiadores como estes nos obrigam a sair da zona de conforto, e abre espaço para novas iniciativas. Foi o que aconteceu ao longo dos nove anos em que o edifício esteve fechado para a visitação pública.
Em 2017, o Museu voltou a promover ações no sete de setembro. Era um ano chave para a instituição, graças ao concurso lançado para a melhor proposta de transformação arquitetônica do edifício, a ser executada em tempo recorde, para as celebrações do bicentenário da Independência. O convênio firmado em 2016 com o SESC São Paulo criou a oportunidade para que o Museu Paulista e o SESC Ipiranga, vizinhos e alinhados culturalmente, idealizassem a primeira edição do Museu do Ipiranga em Festa! Afinal, tínhamos o que comemorar, com o concurso no horizonte e as primeiras iniciativas de patrocínio do grande projeto para o novo Museu do Ipiranga. A festa aconteceu no parque da independência, com ações culturais diversas, que procuraram chamar a atenção da sociedade para este espaço e para a sua potência como lugar para refletir sobre o Brasil e suas culturas. O parque se tornou, por um dia, o palco para dança, teatro e música e foi nesse processo, de enorme sinergia entre as equipes de ambas as instituições, que o projeto Ocupação Ipiranga começou a ser gestado.
A pergunta que orientou as ações encadeadas a partir de 2017 e até meados de 2019 era: “Que museu queremos reabrir em 2022? ”.
Longe de ser retórica, a pergunta evidenciava o reconhecimento das exclusões sociais nas narrativas históricas oficiais, entre elas, aquela configurada por Taunay para celebrar o primeiro centenário da Independência. Tratava-se da continuidade das ações já propostas e executadas pela equipe do museu desde 1990, expressas em sua política de acervos, nos eventos acadêmicos e nas exposições e que, naquele momento, podiam ser expandidas para territórios artísticos. Com o edifício fechado para exposições, buscamos trazer outras formas de materializar essa visão crítica mobilizando os grupos de interesse. Assim, a proposta curatorial construída a partir dessa pergunta balizadora buscou ocupar esse território simbólico com performances, saraus, leituras e intervenções dramatúrgicas. Não queríamos tornar o edifício um palco para apresentações, mas, antes, atrair grupos interessados em experimentar e apostar em criações que discutissem temas candentes para a sociedade brasileira a partir dos acervos e do espaço do museu.
Ainda em 2017, uma das ações realizadas no parque durante o Museu do Ipiranga em festa, o monólogo Leopoldina, Independência e Morte [estudo #2] – foi apresentada no saguão do Museu e compôs, junto com propostas do educativo do Museu, uma programação integrada com conversas, bate-papo, visita guiada e exposição, inaugurando a Ocupação Museu do Ipiranga.
A obra recria dois fragmentos da vida da Imperatriz Leopoldina, que viveu no Brasil entre 1817 e 1826 e faleceu aos 29 anos: no primeiro momento ela acabou de chegar ao país e relata suas primeiras impressões do lugar, num misto de fascínio e medo. O segundo fragmento é a recriação poética do seu delírio final, onde ela mistura futuro e passado para olhar para questões que perduram até hoje em nossa sociedade.
Em 2018, após a segunda edição do Museu do Ipiranga em Festa, foram apresentados os trabalhos Serviçal, Apagamentos e Alla Prima. Em Serviçal a atriz Ana Flávia Cavalcanti convida negros e negras presentes a contarem suas histórias de trabalho,mesclando depoimentos que ela colheu durante a performance A Babá quer passear. O trabalho provoca uma discussão entre duas realidades muito distintas: ser um trabalhador negro e ser um trabalhador branco no Brasil. Apagamentos, do diretor e dramaturgo Zé Fernando Azevedo discute as relações entre a independência e a escravidão e as lutas abolicionistas e emancipatórias. Em Alla Prima o coreógrafo Tiago Cadete apresenta uma performance baseada nas imagens que, em mais de cinco séculos, criaram ideias sobre o que seriam o Brasil, os brasileiros e a chamada brasilidade. Ao revisitar a representação do corpo na história da arte brasileira, especialmente na pintura, Cadete contempla a narrativa histórica tradicional de uma nação composta por africanos, europeus e indígenas, rechaçando os estereótipos que daí surgiram.
Em 2019, as ações recomeçaram em fevereiro, com três saraus, o Sarau DiaspOralidade: Descolônia em Mares Revoltos, formado por imigrantes não europeus, o Transarau, composto por escritoras e escritores transexuais e convidados e Sarau Roda de Poemas com o Coletivo Mulheres Negras na Biblioteca. Os grupos ocuparam o edifício de forma simbólica, subjetiva e objetivamente, expondo a diversidade brasileira com suas singularidades, etnicidades, distintas orientações sexuais e identidades políticas.
Em seguida, o edifício foi ocupado pelo trabalho Matriarcado de Pindorama da Estelar Cia. de Teatro, que recria a história do Brasil a partir do protagonismo feminino e outras vozes esquecidas pela história oficial. Em abril, como parte da programação Abril Indígena, a Cia. Livre, grupo de teatro dirigido por Cibele Forjaz, apresentou Morte e Dependência na Terra do Pau Brasil, ação que integra a abertura de processo da montagem do espetáculo Os Um e Os Outros, que une o estudo realizado sobre o teatro épico de Bertolt Brecht com a pesquisa continuada dos conteúdos e formas das cosmologias ameríndias, realizada pela Cia. Livre e seus membros desde 2006.
A última ocupação foi a criação da dramaturga e também professora da ECA, Maria Thaís Lima. Maria Thaís desenvolveu um trabalho específico para a ocupação, respondendo ao desafio proposto pela equipe do Museu Paulista de partir de obras do acervo para tratar das disputas de narrativas, trazendo outras vozes, performando outros territórios que ocuparam território do poder bandeirante do saguão nos dois meses. A trilogia Florestanias, Sertanias e Ribeirias partem de três pinturas à óleo pertencente ao acervo do Museu – Índio com arco e flecha (de Van Emelen), A Baiana (pintor desconhecido) e Herói da Guerra do Paraguai (Van Emelen) para reinserir as narrativas dos povos da floresta, dos afrodescendentes e da guerra pelas águas que dizimou milhares de indígenas e alforriados em uma das mais sangrentas guerras do Brasil. A trilogia foi documentada pelo videoartista Ighor Boy e, em 2020, o material em vídeo provocou outra criação – o documentário Territórios de Resistência – Florestanias, Sertanias e Ribeirias, produzido pela TV SESC e lançado em 2021. Um retrato contemporâneo do Brasil e suas fissuras históricas, narradas pelas vozes de ativistas dos movimentos sociais que não nos deixam esquecer que Brasil somos e quais os territórios que nos habitam cotidianamente.
Uma resposta para “Ocupação Museu do Ipiranga”
[…] foi marcado por uma programação rica em atividades, para todos os gostos e todas as idades. Era o “Museu do Ipiranga em Festa!”, uma realização do museu com o SESC, em uma parceria que já conta seis anos e que, em 2023, […]