Labaredas em cena “Museu Nacional [todas as vozes do fogo]”

por Aline Montenegro Magalhães

O musical “Museu Nacional [todas as vozes do fogo]” encerrou sua temporada no Teatro Riachuelo, no Rio de Janeiro, no último final de semana. Mas, iniciando o mês dos museus, não poderia deixar de compartilhar algumas notas sobre esse espetáculo da Barca dos Corações Partidos. Mais um dessa Companhia de teatro a me arrebatar, me encantar e a me incomodar também, para além de suas duas horas de duração. Sim, porque mesmo com musicalidade e poesia, as vozes do fogo queimam, deixando feridas incuráveis e lançando luzes sobre um episódio trágico que nunca vamos esquecer: o incêndio do Museu Nacional, ocorrido há pouco mais de 4 anos.

Composta e dirigida por Vinicius Calderoni, com direção musical de Alfredo Del-Penho e Beto Lemos, a peça é dividida em 3 atos ao longo dos quais são executadas vinte músicas autorais, compostas especialmente para o espetáculo (três das quais podem ser ouvidas na plataforma Spotify). O texto é primoroso! E impressiona por tratar temas difíceis, duros, tensos, com leveza, lirismo e humor, não deixando de ser crítico e a nos socar a boca do estômago várias vezes. Demonstra um trabalho denso e intenso de pesquisa sobre a complexidade do museu – não apenas o Nacional, mas essa instituição moderna com sua história, desafios e dificuldades -, apresentada como parte da própria história do país e síntese da nossa realidade atual.

Inicia-se com uma evocação à memória nos lembrando que havia história antes da história, em língua originária. E a protagonista dessa história é quem nos conduz em uma visita ao museu, que também é uma visita a nós mesmos: Luzia, nossa ancestral maior, cujo crânio, item das coleções do museu, foi poupado das chamas destruidoras. Interpretada pela brilhante atriz Ana Carbatti, Luzia ilumina as entranhas do museu, sua história, seu acervo, suas práticas e seus agentes. Mostra que esse lugar não é estático e silencioso como aparenta e como muitos ainda acreditam que seja. Com sensibilidade, dialoga com os objetos, deixando-os contar suas próprias biografias, que antecedem e transcendem as paredes do palácio da Quinta da Boa Vista. Vale aqui uma nota para o figurino que, com a iluminação, provoca um efeito visual vibrante e comovente, ao reproduzir cores e texturas do que o Museu Nacional preserva(va), representando a diversidade das coleções.

Eu e Fabi(ana Vidal) combinando, sem ter sido combinado, com o preto e branco do banner da peça “Museu Nacional [todas as vozes do fogo], ao lado da Luzia (Ana Carbatti). 
Teatro Riachuelo, Rio de Janeiro, 22/04/2023. Foto: Fred Bellintani
Eu e Fabi(ana Vidal) combinando, sem ter sido combinado, com o preto e branco do banner da peça “Museu Nacional [todas as vozes do fogo], ao lado da Luzia (Ana Carbatti). Teatro Riachuelo, Rio de Janeiro, 22/04/2023. Foto: Fred Bellintani

Ainda neste ato, Luzia apresenta o trabalho de pesquisadores, professores, estudantes e equipes, que movem as engrenagens do museu, empenhando-se na produção do conhecimento, nas ações educativas e de divulgação, nas atividades de conservação e exposição, entre tantas outras que fazem barulho e movimentam o museu no cumprimento de sua função social. É a vida pulsante do fazer museu dignificada pela arte a mostrar um bastidor pouco conhecido e, muitas vezes, inimaginável. Lágrimas não foram contidas neste momento, pois pensei em tudo o que se perdeu, nos funcionários e estudiosos que viram arder no fogo seus objetos de pesquisa, suas fontes, suas referências. Lembrando as cenas das chamas consumindo o nosso patrimônio, que acabara de completar 200 anos, a que assistíamos em desespero e impotentes… Ainda estamos de luto.

No segundo ato, a história se desloca das salas do museu para focar no seu entorno, um Brasil que se visita. Sem se prender a um sentido cronológico, desenrolam-se fatos históricos de forma satírica, como a construção do palácio a mando de um traficante negreiro, pelas mãos de escravizados. A negociação da propriedade com D. João VI para que a família real viesse a ocupar o edifício e toda a Quinta da Boa Vista, naquele jogo político indigesto que se joga até hoje, o do tal “toma lá dá cá”. O terceiro ato denuncia os males legados por esse passado tragicômico que ainda nos fere, adoece e mata, nos aprisionando a desigualdades e injustiças, mas aponta caminhos promissores de apropriação dos museus e do patrimônio para a construção de um futuro diferente.

Gostaria de seguir comentando esses dois últimos atos da peça que partem do museu para pensar o Brasil de ontem e hoje. Mas, me sintonizo aqui com as palavras do autor e diretor Calderoni:  “O Museu Nacional em chamas era, neste contexto, uma imagem emblemática que traduzia […] o descaso pelo patrimônio, o desprezo ao passado, a devastação naturalizada, o desastre como norma. Era, para que não restasse dúvidas, a imagem mais bem acabada do país que havíamos nos tornado”. Continua ele: “O país que havíamos nos tornado ou que sempre fomos? A expressão Museu Nacional traz embutida a carga metafórica de um espaço/espelho que reflete a história do Brasil – e, portanto, fala inescapavelmente de escravidão, do genocídio dos povos originários, de pactos oligárquicos nocivos e de uma vasta e perversa tradição de perpetuamento de injustiças estruturais e, ao mesmo tempo, da potência do que podemos produzir coletivamente, na arte, na cultura, através da força da solidariedade, da capacidade de reinvenção e da força do patrimônio imaterial que é a riqueza de nosso próprio povo. Horrores e maravilhas em abundância”.

E depois de ouvir tantas vozes, inclusive a do fogo, cuja fala esquenta a cabeça e queima o corpo, mas também nos ilumina sobre sua importância e potência transformadora, saímos do espetáculo com o coração aquecido e a chama da esperança acesa. Especialmente com uma das últimas músicas, “Inventário de perdas”, me senti convocada e encorajada a partir dos escombros para construir outras possibilidades de vida, (re)assumindo responsabilidades e compromissos com a luta por uma sociedade melhor.

E nesse processo não podemos esquecer o papel dos museus e sua potência, como bem nos lembra o tema da 21ª Semana de Museus “Museus, sustentabilidade e bem-estar”, durante a qual o Museu Paulista da USP e o Departamento de Arquitetura e Urbanismo da UERJ (Petrópolis) realizarão o Seminário Escritas de Museus: suportes, linguagens e públicos. O evento é dedicado à reflexão e ao debate sobre as produções dos museus que os projetam para além de seus edifícios. Publicações científicas, materiais educativos e plataformas na Internet serão temas abordados ao longo dos dias 17 e 18 de maio.

Chamo a atenção aqui para a fala de Crenivaldo Veloso, historiador do Museu Nacional que, na mesa “Museus em páginas e em circulação – revistas científicas e catálogos”, vai tratar de uma documentação do acervo dessa instituição, que foi consumida pelo fogo, mas que pode ser conhecida por outros meios, como a pesquisa que ele desenvolveu. Trata-se do Catálogo Geral das Coleções de Antropologia e Etnografia do Museu Nacional, no qual foram listados muitos dos objetos que se perderam. Junto com Veloso, outros profissionais da área apresentarão parte de seus trabalhos na produção escrita dos museus. Vale conferir essa programação completa!

Assim, Inspirada pelo fogo transmutador do teatro e dos museus, das artes e das ciências, vou ficando por aqui, celebrando os 10 anos da Barca dos Corações Partidos (PARABÉNS!!!!) e torcendo muito para que “Museu Nacional [todas as vozes do fogo] volte logo a entrar em cartaz. Afinal todas, todos e todes devem e merecem vivenciar essa aula polifônica, cheia de cadência e movimento, proferida por artistas multitalentosos. Quem sabe assim não aprendemos a “errar menos” e viramos a página do obscurantismo? Que se abram as cortinas!!!!

Elenco no encerramento da peça Museu Nacional [todas as vozes do fogo]. Da esquerda para a dieita: Felipe Frazão, Rosa Peixoto, Alfredo Del-Penho, Lucas dos Prazeres, Aline Gonçalves, Ana Carbatti, Adrén Alves, Eduardo Rios, Adassa Martins, Ricca Barros, Beto Lemos e Luiza Loroza. Foto: Romney Lima

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Mais sobre o Museu Nacional no Exporvisões

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