Estátuas em transe: iconoclasmo e assimetrias na produção da história

por Marcelo Abreu (UFOP)

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Série de pequenas figuras de Alberto Giacometti (c.1939) em exposição no Guggenheim, Nova Iorque, 2018. Foto do autor

Gostaria de refletir sobre o iconoclasmo apontando a novidade que há num movimento ilimitado pelos espaços nacionais e, ao mesmo tempo, a assimetria em sua disseminação. Já houve isso antes, mas a escala global do debate e de outros atos semelhantes ao gesto da multidão em Bristol me parece algo novo. Pode-se mesmo arriscar uma hipótese. No momento em que o direito universal à respiração é ameaçado, aparentemente por causas naturais, conectando todos no transe pandêmico, uma frase sinaliza a desigualdade brutal na má distribuição do direito à vida: “I can’t breathe”. Ouvida e repetida ao redor do mundo, mas especialmente sentida nos espaços criados pela diáspora, a última frase de George Floyd removeu o véu racista que cobre a história presente e passada. A assimetria concreta e presente tocou as desigualdades simbólicas na produção da história: as estátuas se tornaram matéria de ritos políticos contestatórios dos poderes que perpetuam. A justiça desses gestos, porém, não cancela outras desigualdades de natureza simbólica que estruturam a memória global. É também sobre essas assimetrias que desejo pensar.

As cenas da estatua derrubada em Bristol percorreram o mundo, talvez com intensidade semelhante a do assassinato brutal de George Floyd. Edward Colston já não respirava, George Floyd já não respira. Um suspirou para a eternidade, em 1721, revivendo no bronze em 1895, quando a lembrança de seus atos como mercador de escravos não suplantava a imagem de filantropo. O outro foi sufocado em 2020, quando as imagens da violência racial não cessam de se repetir, provando a força persistente de uma história que não passa apesar de todos os movimentos anti-racistas de ontem e de hoje. Na controvérsia aberta sobre a iconoclastia em curso, houve quem desqualificasse os atos contra os monumentos como gestos violentos. Sejamos honestos, uma estátua não é violentada – esse não é um qualificativo que se aplique ao bronze como se fosse carne.

Uma semana depois, um senhor, cujo corpo sinaliza pratos fartos e vigor de uma saúde de ferro, derrubou cruzes plantadas para lembrar os mais de 40 mil mortos por Covid-19. Zombar do luto inscrito temporariamente na areia de Copacabana – praia mítica que projeta a beleza e a miséria brasileiras globalmente – pareceu muito correto para seu autor e sua claque. O gesto não espanta, claro. Ao vê-lo, recordamos a branca indiferença sobre a morte pobre das periferias brasileiras. Mortes que facilmente esquecemos, nomes convertidos em números: mais de 50 mil assassinatos, a esmagadora maioria de jovens negros e pobres, todos os anos. Imediatamente, porém, o escárnio com o luto despertou a reação de um homem negro, pai de um jovem de 25 anos morto pela doença em abril. Procuraram silenciá-lo reforçando o respeito que deveria ter por “um senhor” – a polissemia da palavra remete a um tempo persistente, especialmente se trocamos “um” por “o”. Contra a fala senhorial, esse homem voltou a recolocar as cruzes no lugar, lembrando que não eram números, mas nomes. Reconstruindo a inscrição temporária, afirmou a memória das vidas perdidas contra a noção e práticas fascistas que definem quais corpos são dispensáveis física e metaforicamente, para a vida e para a lembrança.

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Série de pequenas figuras de Giacometti em exposição no Guggenheim, Nova Iorque, 2018. Essa parece ser o modelo para o bronze “Homenzinho sobre pedestal” de 1939. Foto do autor.

É preciso assinalar a assimetria na circulação global das imagens desses atos mnemônicos – gestos de evocação do passado que tencionam mover o presente. Diria que, nas margens do mundo, já estamos acostumados a esse desequilíbrio – o que não significa aceitá-lo. A derrubada da estátua em Bristol reacendeu um debate sobre a memória do escravismo e seus efeitos, bem como do racismo resistente na apresentação da história. Debate que tem muita força nos EUA envolvendo a retirada de estátuas e símbolos confederados no sul e personagens identificados à escravidão por toda a parte. Mas a força do ato em Bristol relaciona-se à magnitude do fato que provocou o protesto: a onda de manifestações anti-racistas nos EUA e no espaço global constituído pela diáspora em plena epidemia que mata mais negros que brancos, não esqueçamos. Em sua propagação, o evento desafiou a persistência da violência racial presentemente sentida e estruturada nas imagens hegemônicas da história. Por toda a parte, muitos começaram a olhar para os monumentos com renovada desconfiança ou sincera fúria.

No que toca aos monumentos, não assistimos a repercussão comparável quando chilenos e chilenas derrubaram e corromperam símbolos do colonialismo durante as manifestações contra os efeitos deletérios de políticas neoliberais impostas desde a ditadura Pinochet. Lembro especialmente da queda de Pedro de Valdívia, da bandeira mapuche cobrindo os monumentos e da tinta vermelha escorrendo dos olhos frios de imagens masculinas. Desse canto do mundo a propagação dos atos de recordação dificilmente ganha momento, dada a distribuição desigual na produção do acontecimento. Contudo, também do Chile partiu o ritual político mais efetivo contra o patriarcado, reação imediata à brutal violência da polícia chilena, inclusive sexual, contra as manifestantes. Uma performance contundente que se tornou pervasiva em sua disseminação através da Terra, traduzindo-se em diversas línguas e corporeidades femininas em cenários desenhados por monumentos consagrados. Suspeito que “Un violador en tu camino” marcará os 8 de Março por muito tempo. Comparando os dois gestos, porém, as estátuas chilenas derrubadas não ganharam a mesma atenção que o ritual feminista, cuja importância também demora na denúncia da violência de gênero através da história.

Relembro esses atos e momentos para pensar a derrubada das estatuas como atos da recordação articulados aos movimentos políticos, particularmente a irrupção da multidão e seus acontecimentos contra o Estado e as estruturas herdadas. É evidente, conforme apontei, a repercussão desigual dos atos em termos globais. A assimetria, contudo, pode reverter-se certamente, como o prova “Un violador en tu camino”. Mas persiste a coincidência nas estruturas globais e locais de produção do presente e da história: a queda de Edward Colston teria recoberto as cruzes anônimas em Copacabana. Essas duas evidências indicam a complexidade das assimetrias na produção da história num tempo de repercussão amplificada dos acontecimentos e da narrativa sobre o passado. Outras diferenças de poder se realizavam no passado das estátuas, isto é, quando eram emblemas quase exclusivos de uma classe, dos Estados Nacionais, da branquitude, dos poderes coloniais – e mesmo nesse tempo estiveram à mercê da indiferença, da iconoclastia das marretadas ou do riso.

 

Hoje, intensifica-se a sujeição das estátuas e outros monumentos às forças históricas que serviram para denegar. As cores nacionais, que invisivelmente envolvem sua pátina, não conseguem deter o impulso de passados por muito tempo calados. Contra essa pátina emergem histórias que apelam a identificações e posições políticas que transcendem a contenção nacional. Considerando as inscrições aqui lembradas, trata-se de pensar como, apesar das assimetrias na visibilidade de cada ato mnemônico espalhado pelo globo, as posições de gênero e raça tomam as estátuas e monumentos para si, subvertendo seus sentidos originais ao pintá-las, cobri-las ou derrubá-las. Nesses movimentos de conspurcação positiva dos emblemas, as estátuas, antes aparentemente inertes em sua frieza, tornam-se símbolos de opressões que criaram o mundo desigual como ele é antes que houvesse uma cidade a embelezar, um patrimônio a proteger, uma história nacional para comemorar. O impulso que agora (re)move as estátuas vem de uma revolta muito mais universal e mais antiga.

Leia também da série “Memórias em disputa, monumentos em litígio”: “Ciranda dos monumentos em Buenos Aires” por Aline Montenegro e Francis Picarelli https://exporvisoes.com/2020/06/15/ciranda-dos-monumentos-em-buenos-aires/ “Monumentos e insurreição popular: põe no museu ou deixa quebrar” por Fernanda Castro https://exporvisoes.com/2020/06/20/monumentos-e-insurreicao-popular-poe-no-museu-ou-deixa-quebrar/ “Por uma ciranda sem degolas e esquartejamentos” por Márcio Magalhães de Andrade https://exporvisoes.com/2020/06/27/por-uma-ciranda-sem-degolas-e-esquartejamentos/   

3 respostas para “Estátuas em transe: iconoclasmo e assimetrias na produção da história”

  1. […] pensar, ainda, na potência e no medo da destruição, tão bem retratados por Marcelo Abreu (Estátuas em transe: iconoclasmo e assimetrias na produção da história). Como vimos ao longo da série, a iconoclastia tem uma longa tradição. Gostamos de pensá-la […]

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