Artefatos, xingamentos e uma provocação gratuita: cultura material, redes sociotécnicas e nós

por José Neves Bittencourt

Outro dia vi uma cena interessante, perto de minha casa, aqui em Belo Horizonte: um cara tentava trocar o pneu de um carro. De repente, a chave-cruz, na qual o rapaz estava trepado, tentando afrouxar, usando o próprio peso, uma das porcas que prendem a roda ao cubo, se soltou. O coitado bateu violentamente com o joelho na lataria do carro e imediatamente começou a xingar: “Filhada&@%#! Fiiilhaaada&@%###!!!” A cena foi engraçada. Mais engraçada, entretanto, foi a pergunta feita por outro cara, do qual eu estava perto o suficiente para escutá-lo: “Ele está p@%o com a chave ou com o carro?”

Eu apostaria na chave-cruz, “responsável”, em princípio, pelo acidente. Mas passado algum tempo, ocorreu-me que a observação estava, no âmago, equivocada: nem a ferramenta, nem o carro. De fato, o rapaz xingava alguma outra pessoa. Mas como assim, se era evidente a todos que ele estava sozinho na tarefa?

Apontemos o fato de que o caso se deu em torno de diversos artefatos: a chave-cruz, a porca, o pneu arriado, o carro. Até aí, nada de mais, pois estamos cercados de artefatos, maiores, menores, enormes, minúsculos, que constituem extensões de nossos corpos. Esses, entretanto, não aparecem sozinhos na face da terra, não dão em árvores. Tanto o carro quanto o pneu furado e a roda que o rapaz não conseguia soltar através de uma ferramenta em princípio feita para tal, são produtos de processos sociais que se cruzam de várias maneiras: na corporalidade (1) de que se revestem tais processos; na (2) criação de técnicas que habilitam os membros das sociedades a utilizar artefatos e no estabelecimento de redes sociotécnicas; (3) que lhe permitem tomar a decisão de utilizar este ou aquele artefato porque se sentem habilitados a usa-los.

Proponho-me a pensar sobre esse tema segundo os estudos da cultura material. A terceira proposta acima, por exemplo, mobiliza a noção de agência. Do que se trata? Desde Max Weber em 1922, inúmeros pesquisadores, como Chris Baker e Antony Giddens (para citar dois bem conhecidos) afirmam que indivíduo é um sujeito mais passivo, enquanto agente (o sujeito de uma agência) sugere atividade e iniciativa, o que permitiria abordar em maior amplitude o sentido subjetivo da ação. Nessa complexa teia, o agente pode decidir realizar uma ação de maneira diversa da usual. É dele a decisão de realizar coisas de “outro jeito”, fora de uma dada técnica operacional pré-definida – que no caso dos artefatos, todos têm. Indivíduos envolvidos nessa teia formam uma “agência”. Daí Bruno Latour aproxima a noção de nosso campo de interesse ao admitir, lá pelos anos 1990, atores não-humanos no processo, desta forma ampliando o alcance da análise através da introdução da noção de rede sociotécnica.

Essa noção oferece a possibilidade de uma explicação para o pequeno incidente que presenciei, apontando a quem se dirigiria a raiva do rapaz da chave-cruz. Não era, certamente, ao artefato, ferramenta encontrável em 99 por cento dos automóveis e de operação excruciantemente simples. Com esse aparente insulto às habilidades do rapaz do carro, passemos a outro ponto, o segundo: em 1934, Marcel Mauss proferiu palestra na qual apresentou a noção de técnica do corpo. Esta foi, dois anos depois, publicada sob o título “As técnicas do corpo”. Logo ao início do artigo, e de forma telegráfica, o grande Mauss explica do que isso se trata: “… as maneiras como os homens, sociedade por sociedade e de maneira tradicional, sabem servir-se de seus corpos.” Para Mauss, o corpo seria o “primeiro instrumento” do homem, ao mesmo tempo objeto e meio técnico. Esse “objeto” e “meio técnico” gera um conhecimento específico sobre si, cuja apropriação é sempre de natureza social, assim como sua reprodução e disseminação. Mas talvez o mais importante dentre as constatações no texto é que não existe nada de natural nos atos corporais. Cada sociedade possui seus próprios repertórios, que são tradicionais e de natureza social, difundidos pela educação, e encontram-se encarnados em cada indivíduo. Ele cita como exemplos, dentre outros, o andar e a natação. Eu vou usar a chave-cruz.

Essa noção de técnica do corpo conduziria, posteriormente, à noção de corporalidade, ou seja, a materialidade do corpo e a apropriação social que dela é feita. Mas também é preciso apontar que as técnicas do corpo também se expressam na relação com os artefatos que atravessam nossa vida diária. Aprender a usar artefatos implica em mobilizar a corporalidade através da qual a sociedade mobiliza os corpos que a compõem diante dos artefatos que objetivamente a viabilizam. Pegarei um exemplo de meu “museu pessoal”: ainda criança (uns oito anos, lá pelos idos de 1966…), meu pai me ensinou a ligar e sintonizar a televisão, na época um caixotão de madeira com alguns botões posicionados ao pé da tela. Era preciso certa habilidade para lidar com esses botões, pois eram meio duros (“não força demais senão quebra” – explicou-me ele). Eu – como qualquer criança em qualquer época – aprendia rápido, embora com alguns percalços no caminho. Acho que posso citar também o uso de talheres como um dos primeiros refinamentos dessas técnicas do corpo. Uma criança de tenra idade recebe artefatos de comer feitos em princípio de materiais “seguros” – plásticos ou algum outro material inquebrável – e talheres sem pontas ou fio, e aos poucos, conforme adquire habilidade com esses, recebe outros, mais complicados. Mas pensemos aqui: é possível aprender a usar botões, talheres ou qualquer outra coisa do gênero sem algum conhecimento prévio de como usar as mãos e os pulsos? Usar as mãos é uma técnica corporal; adquirir habilidades implica, em boa parte dos casos, em juntar a técnica corporal a algum artefato. Essa aquisição persiste pela vida.

Minha abordagem passa agora a basear-se, embora não rigorosamente, na ideia de Latour sobre ator-rede, muito mais complexa do que aquilo que precisamos aqui. Mas as ideias de transporte de significados e de intermediário (o que transporta o significado), mesmo que incorporada por mim de um modo um tanto capenga, parece funcional e permite voltar a pensar no rapaz da chave-cruz: em algum momento ele aprendeu a usar essa ferramenta, seja por educação ou, mais provavelmente, por imitação (Mauss se refere às duas possibilidades). Como disse antes, a aquisição de habilidades dura a vida toda. Só que, digamos, “aprendeu errado” – aí, só podia mesmo “dar ruim”. A morfologia da ferramenta não permite o uso que ele pretendia fazer dela, daí a falha catastrófica. Quando a coisa toda deu errado, as pragas do rapaz estavam, de fato, sendo dirigidas ao sujeito que o “ensinou errado” a usar a chave-cruz, e não propriamente à chave. O “ator não humano” da rede acaba constituindo elo com o sujeito que, voluntariamente ou não, ensinou uma habilidade ao rapaz do carro: como usar um artefato. Só que a técnica corporal correlata (subir em cima da chave-cruz) estava errada, daí…

Outro exemplo, também chegado à exposição teórica de Latour. Com certa frequência, me pego emitido uma espécie de “comentário padrão” sobre certos artefatos: “Como essa po++@ é mal desenhada!!!” Geralmente o comentário atinge um objeto que não cumpre bem sua tarefa: um aspirador-de-pó robô que insiste em ficar preso debaixo dos móveis ou um suporte de parede que não combina direito com minha TV de tela plana. Ora, estou xingando não o objeto, mas alguém que, em algum ateliê de design, o projetou. A “culpa”, em princípio, seria desse cara que gerou uma forma material que “deu ruim” – tanto no meu caso quanto no do cara da chave-cruz. Ou seja: temos aí uma rede de “transportadores de sentido” não humanos, que nos levam até um agente no fim dela. Aquele ao qual o artefato, de certa forma, retorna.

Vamos agora ao último ponto: minha caríssima amiga e colega Aline Montenegro me contou que o Museu Histórico Nacional decidiu expor os infames objetos de tortura de escravos acompanhados de uma interpretação resultante das atuais matrizes teóricas adotadas pela Instituição. Claro, quando Aline fala em “o Museu Histórico Nacional decidiu…”, já está apresentando uma “agência” segundo a argumentação de Latour sobre as redes sociotécnicas. Museus são, por excelência, dessas coisas: a decisão foi da equipe técnica, de cientistas sociais compondo redes com artefatos.

Mas o fato é que a exposição reúne artefatos que, nem mais nem menos, desnudam o quanto degenerado o caráter humano pode ser: os tais “instrumentos de escravos” (como a “agência”, muitos anos atrás, se referia a essas coleções) não são menos que infames. Bem regulada, entretanto, pode nos lançar a ver por trás deles: apontar a corporalidade e as técnicas corporais que renderam a resistência que permitiu aos torturados sobreviver. Resistência essa que resultou na capoeira, no samba, na ginga, nas tecnologias, na arte, nos gostos – enfim, no conhecimento do corpo e na cultura que todos herdamos, e que Mauss certamente teria amado observar e entender. E sobretudo, não é africana. Nem brasileira. É afro-brasileira.

Nos museus, cientistas, público e “agentes não humanos” (ou seja –acervo e exposições) constituem uma “agência” que aponta para nossa humanidade, com virtudes e vícios. Estraçalhada junto com os corpos escravizados, logrou sobreviver numa cultura material que é, para bem e para mal, de toda sociedade brasileira.

É esta a “provocação gratuita”: da mesma forma que o rapaz xingou a chave-cruz, eu xingo artefatos “mal desenhados” e você aí talvez xingue outro artefato, os museus devem nos fazer, pura e simplesmente, xingar artefatos infames, ao mesmo tempo que os explicam. Mas com a plena consciência de que estaremos de fato xingando o agente lá no fim da cadeia. Os que lá atrás se beneficiavam da tortura; os que se beneficiam, ainda hoje, do racismo e dos preconceitos dele decorrentes.

No caso, aqueles que, por trás dos artefactos, realmente merecem ser xingados.

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Para saber mais:

Marcel Mauss, As técnicas do corpo (1934).
Disponível em: https://edisciplinas.usp.br/pluginfile.php/4275167/mod_resource/content/1/Mauss_Marcel_1935_2003_As_tecnicas_do_corpo.pdf

Alice Haibara, Valéria Oliveira Santos. (2016). “As técnicas do corpo”. Enciclopédia de Antropologia. São Paulo: Universidade de São Paulo, Departamento de Antropologia. Disponível em: https://ea.fflch.usp.br/obra/tecnicas-do-corpo

Jocimar Daolio, Ana Carolina Capellini Rigoni, Odilon José Roble (2016) “Corporeidade: o legado de Marcel Mauss e Maurice Merleau-Ponty”.Pro-Posições, Campinas, SP, v. 23, n. 3, p. 179–193, 2016. Disponível em: Disponível em: https://periodicos.sbu.unicamp.br/ojs/index.php/proposic/article/view/864

Sônia Weidner Maluf (20??). “Corpo e corporalidade nas culturas contemporâneas:abordagens antropológicas.” Esboços: história em contextos globais. Disponível em:
https://edisciplinas.usp.br/pluginfile.php/2018515/mod_resource/content/1/MALUF%2C%20S%C3%B4nia.%20Corpo%20e%20corporalidade%20nas%20culturas%20contempor%C3%A2neas%20abordagens.PDF

Dossiê Bruno Latour (2021) Geane Alzamora (Editor), Joana Ziller (Editor), Francisco Ângelo Coutinho (Editor). Ed. UFMG. (Disponível em formato eletrônico para leitor Kimdle).

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