Um Cristo para um Palácio – o Tiradentes do Parlamento brasileiro

por Douglas Libório

Santificar ou ressignificar? Eis a questão. Minha relação com Joaquim José da Silva Xavier, o Tiradentes (1746-1792) tem oscilado entre esses dois polos nos últimos oito anos. Afinal, falar de Tiradentes é, necessariamente, falar das formas de escrita da história do Brasil, através de “grandes nomes” e “grandes datas”: mais especialmente, do feriado do dia 21 de abril, muito conhecido da população e que foi instituído em 1890, pelo Governo Provisório da República nascida em 15 de novembro de 1889. Mais ainda, sua “transformação” num Cristo para a população já foi bastante abordada em artigos já publicados aqui anteriormente. Para além de uma visão do panteão cívico tradicional, Tiradentes se revelou a mim como uma imagem dinâmica: mais do que o herói, minhas observações me mostraram uma certa “vitalidade” dessa figura em rituais simples do nosso cotidiano, quebrando hierarquias temporais e fronteiras geográficas, ligando o Rio de Janeiro à Minas Gerais e entrelaçando o sagrado e o profano pela vida urbana carioca.

Minhas inquietações como pesquisador foram direcionadas para uma obra de arte específica: o “Monumento a Tiradentes”, datado de 1924 completando um século de vida em 2024. A escultura integra o conjunto arquitetônico do Palácio Tiradentes, sede histórica da Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro (Alerj), que já abrigou a Assembleia da Guanabara (1960-1963) e a Câmara dos Deputados (1926-1960). Curiosamente, poucos percebem que a imagem representa o alferes. A reação mais comum ao Monumento vem daqueles que andam em direção à Igreja de São José ou dela saem: ao passar pela escultura, muitos fazem o sinal da cruz frente ao mesmo. Tal prática, ainda que pareça inusitada, nos leva a reflexões sobre a consagração de Tiradentes no imaginário republicano brasileiro.

 

Figura 1. O Palácio da Câmara dos Deputados, 1926. Fotografia de Augusto Malta. Fonte: Fundação Museu da Imagem e do Som/RJ.

 

Figura 2. Monumento a Tiradentes. Autor: Francisco de Andrade, 1924. Fotografia de Thiago Lontra, 2017. Fonte: Acervo Alerj.

 

Elementos para o bom trabalho de investigação histórica a postos, portanto. Primeiro, quais as origens do Monumento? A escultura foi executada pelo artista Francisco de Andrade (1893-1952) para ser o “abre alas” do novo Palácio da Câmara dos Deputados no Rio de Janeiro, então capital federal. O “Cristo” da Inconfidência aqui, ganhou um novo cenário: era a chave de ouro para a festa do Parlamento, no edifício erguido para celebração do Centenário do Poder Legislativo (1826-1926). No Congresso oligárquico da Primeira República (1889-1930), Tiradentes ritualizou a tradição: a nova arquitetura monumental foi construída no local onde havia funcionado a antiga Casa de Câmara e Cadeia, nos séculos XVII e XVIII, local da leitura da sentença do alferes em 1792; o mesmo espaço havia sediado a Assembleia Geral Legislativa do Império e a Câmara dos Deputados da República até 1914.

O Monumento a Tiradentes, portanto criava o “lugar de memória do Parlamento brasileiro”: mediou passado colonial, presente republicano numa fanfarra para o futuro, onde o Legislativo da República liberal seria o protagonista. Inicialmente previsto para ser erguido no local em que se julgava ter sido o enforcamento – na antiga região do Campo de São Domingos (atualmente, engloba parte da Praça Tiradentes e da Rua Visconde do Rio Branco, no centro do Rio) –, o alferes foi escolhido para integrar o processo de construção da nova sede da Câmara. Percebe-se, portanto, como a obra de arte se porta como um complexo, que possui um tempo de vida próprio.

 

Figura 3. O escultor Francisco de Andrade posa em seu ateliê com o Monumento a Tiradentes, 1924. Fonte: Fundo Correio da Manhã/Arquivo Nacional.

 

Esse olhar ampliado sobre a vida artística se evidencia na escultura de Francisco de Andrade, em seus diálogos e inovações em relação às representações tradicionais de Tiradentes. Pode-se fazer um paralelo, especialmente, com a tela “O Martírio de Tiradentes” do paraibano Francisco Aurélio de Figueiredo (1856-1915), onde o olhar para o infinito buscou reforçar a aura cristã do herói e elevar seu pedestal acima da história humana. Do ponto de vista da inovação, a obra de Andrade traz importantes elementos: inspirado pela estética da escultura moderna de Auguste Rodin (1840-1917) em uma diferenciada relação entre volume e massa, descarta-se um acabamento da obra e opta-se pela visibilidade e autonomia do bronze da composição. Longe de uma anatomia perfeita, o metal bruto traz a impressão de como a figura pode estar emergindo de um processo de criação, permitindo múltiplos pontos de vista. Diante da concepção formal fechada, Maria Alice Milliet aponta que a escultura tem como paradigma o Monumento a Balzac, executado por Rodin em 1897: um imenso bloco do qual o personagem retratado emerge evidenciando a textura do material.

 

Figura 4. O Martírio de Tiradentes. Autor: Aurélio de Figueiredo, 1893. Acervo do Museu Histórico Nacional/Ibram/MinC.

 

Figura 5. Monumento a Balzac. Autor: Auguste Rodin, 1897. Fotografia de Jérome Manoukian. Fonte: Agência fotográfica do Musée Rodin.

 

A imagem em bronze de Tiradentes causa um contraste com o tom do Palácio, revestido com cimento branco e areias da região de Caxambu, em Minas Gerais. Essa adoção de uma coloração homogênea do prédio gerou uma quebra na relação figura e fundo, a partir do contraste com o bronze de Tiradentes. A inserção do monumento, portanto, permite que o palácio se desenhe a partir do alferes, em uma tentativa de concepção estética a partir da temática nacional e da inovação plástica que a relação entre arquitetura e escultura traz na construção. Eis aí mais um sinal evidente do destaque dado a Tiradentes na narrativa do Parlamento: não só valoriza a tradição republicana do mártir ao utilizar o bronze, mas possui uma finalidade estrutural, por partir dele toda a hierarquização da narrativa da arquitetura.

 

Figura 6. Contraste do Tiradentes com o grupo “República” ao fundo. Fotografia de Thiago Lontra, 2017. Fonte: Acervo Alerj.

 

Porém, a luta pela imagem do herói como símbolo do Poder Legislativo deixou marcas não só na escolha, mas na memória dos mundos da arte do Rio de Janeiro. Ainda que hoje consolidado na imagem urbana da cidade, o Tiradentes de Francisco de Andrade não foi consenso à época de sua inauguração e gerou inúmeras críticas, zombarias e questionamentos no meio artístico. Poucos meses antes da inauguração do Palácio, o humor ácido do crítico Terra de Senna atacou a postura vertical da escultura: “obelisco estilyzado em Tiradentes ou Tiradentes estylizado em obelisco”; no mesmo mês, o jornal Correio da Manhã criticava a imagem como “horrivelmente modelada”, gerando risos em vez de respeito, além de julgar como absurdo o fato do monumento ter refletores para iluminar a fachada do prédio. Contudo, torcia que “iluminasse do mesmo modo o cérebro de nossos eleitos” e apontava que os bancos laterais seriam espaços de desocupados. Considerado por um articulista do jornal “A Gazeta de São Paulo”, um “boneco sem movimento, nem expressão”, a ridicularização do alferes chegou ao ápice na “Revista Careta” de dezembro de 1933: com o título de Quosque tandem?, apresenta Tiradentes “rezando” a cabeça de um parlamentar integrante da Assembleia Nacional Constituinte de 1933-1934, orientando-o a ter uma “paciência de bronze” para discutir a nova Constituição.

 

Figura 7. Capa da Revista “Careta”, satirizando o monumento e a Constituinte de 1933-1934. Fonte: Revista Careta, nº 1330, ano XXVI, 16 dez 1933. Acervo da Fundação Biblioteca Nacional – Brasil.

 

Das farpas que articulam o político, o religioso e a galhofa típica da vida urbana carioca, encontra-se um herói que se monta e remonta, alternando-se entre tempos sobrepostos, sobrevivendo a democracias e ditaduras e mostrando que os sentidos da arte se fazem no dia a dia. Em Tiradentes esse tempo articula passados recalcados, presentes em questão e expectativas de futuro, fugindo à uma cronologia tradicional, através das interrogações próprias do olhar. Após cem anos, repartido entre Rio e Minas, a imagem do alferes ainda é o ponto de santificação do cotidiano e valores idealizados pelo Legislativo: uma liberdade, ainda que tardia. Tão tardia, que em meio à pandemia da Covid-19, o Palácio do “parlar” testemunhou a memória do inconfidente ser utilizada, aos gritos, em meio do primeiro processo de impeachment de um governador estadual na história do Brasil.

Mais “procurado” no hoje do que na Conjuração mineira, não me surpreenderia que o alferes centenário do Palácio olha em direção àquela República que não foi em 1789 e 1889…

 

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Para saber mais:

MILLET, Maria Alice. Tiradentes: o corpo do herói. São Paulo: Martins Fontes, 2001.

CARVALHO, José Murilo. A formação das almas: o imaginário da República no Brasil. São Paulo: Cia das Letras, 1990.

ROLÉ CARIOCA. Rolé visita o Palácio Tiradentes. YouTube, 27 de março de 2024. 20min44s. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=8WBJ0WoI-nk&t=897s&gt;. Acesso em: 21 de abril de 2024.

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