Histórias indígenas em museus… para além de Tibiriça

por Aline Montenegro Magalhães

Durante muitos anos, a única referência indígena na história do Brasil contada no Museu Histórico Nacional (MHN), no Rio de Janeiro e no Museu Paulista (MP), em São Paulo, foi Tibiriçá. O cacique tupiniquim que foi catequizado e batizado Martim Afonso Tibiriçá, em homenagem ao então donatário da Capitania de São Vicente, Martim Afonso de Souza foi aliado dos portugueses na fundação da Vila de São Paulo de Piratininga, que ocorreu em 1554.

O tacape atribuído a Tibiriçá foi um dos objetos transferidos do Museu Nacional para o MHN quando este foi criado, em 1922. A importância desse objeto no museu, inaugurado para celebrar o centenário da independência do Brasil, centrava-se na imagem do indígena desejado àquela época: católico e aliado da colonização portuguesa no Brasil, vista como origem da civilização nos trópicos, da qual a República buscava ser uma continuidade. Ou seja, o objeto dizia mais respeito ao sucesso do projeto colonizador, que teria “civilizado” o indígena, do que propriamente à história dos povos originários, cujas experiências de conflito e resistência foram silenciadas.

Tacape que teria pertencido a Tibiriçá. Acervo Museu Histórico Nacional. Foto: Rômulo Fialdini, 1989.

O tacape é mais valorizado ainda por ter pertencido a d. Pedro II, que o presenteou ao amigo, escritor, político e militar José Vieira Couto de Magalhães, cujo sobrinho efetuou a doação ao Museu Nacional. Segundo uma funcionária do MHN, em 1960, o tecape “é a única peça de origem tupi na nossa coleção, que já tem para nós um caráter histórico: o de ter pertencido ao 2º imperador do Brasil, o que justifica a sua presença neste prédio”. Melhor dizendo, o valor histórico do objeto é creditado apenas ao fato de ter pertencido a d. Pedro II, ganhando aura de relíquia, o que atestaria também a sua autenticidade como artefato que teria sido do indígena, séculos antes.

No MP, Tibiriçá está em um retrato de grandes dimensões pintado por José Wasth Rodrigues, em 1934, sob encomenda do então diretor Afonso Taunay. Era preciso dar corpo e rosto ao herói, para que pudesse ser visualizado como deveria ter sido. E esse retrato foi reproduzido em vários suportes, a exemplo dos livros didáticos, contribuindo para a construção do imaginário sobre o indígena, como se efetivamente tivesse tido aquela aparência. Tibiriçá, posicionado ao lado da principal porta de entrada do museu, aparece como protagonista do mito fundador do Brasil a partir de São Paulo, ao lado de seu neto, filho de Bartira, segurando o seu tacape, que por sinal, é bem diferente daquele preservado no MHN. O menino simboliza a origem mameluca da sociedade brasileira e está presente também no retrato de João Ramalho, seu pai, localizado do outro lado da porta. Os quadros formam um nicho que conta ainda, acima deles, com um retrato menor do Rei de d. João III, rei de Portugal que dividiu parte da América em capitanias hereditárias para impulsionar a sua ocupação pelos portugueses, e outro de Martim Afonso de Souza. Todos de autoria do mesmo pintor.

Os quatro retratos pintados por José Wasth Rodrigues instalados no peristilo do Museu Paulista.Vê-se à direita, a escultura de Luigi Brizzolara, Antônio Raposo Tavares. Acervo do Museu Paulista da Universidade de São Paulo. Reprodução: Helio Nobre; José Rosael 

 

Cacique Tibiriçá e neto, [1934], de José Wasth Rodrigues. Acervo do Museu Paulista da Universidade de São Paulo. Reprodução: Helio Nobre ; José Rosael.

As pessoas que entravam pela porta principal do museu, olhavam para trás para identificar o Brasil que nasceu em São Paulo, a partir de iniciativas políticas portuguesas e das relações estabelecidas entre portugueses e os donos efetivos da terra. Nessas relações a mulher é invisibilizada, representada apenas pelo seu rebento. Os conflitos e tensões são silenciados em nome de uma visão pacificadora pautada na cordialidade, na cooperação e, por que não dizer, no amor? Mais uma vez Tibiriçá é tomado como um exemplo desejado de conduta indígena no Brasil republicano, que lidava com as populações originárias com discursos de progresso para invasão de suas terras e de civilização para que fossem integrados à sociedade em condições de subalternidade. Essa visão de superação de um passado indígena, selvagem e atrasado, é ainda fortalecida com a escultura do bandeirante Antônio Raposo Tavares, esculpida por Luigi Brizzolara, cujas conquistas aos povos indígenas são lembradas nas escrituras do seu pedestal como efemérides, e com o quadro de Henrique Bernardelli chamado “Ciclo da caça ao índio”, exposto na escadaria do monumento arquitetônico.

Diferente do MHN, no Museu Paulista, o Tibiriçá não reinava absoluto como único objeto da coleção referente aos povos indígenas. Entretanto, as coleções de artefatos indígenas que compunham o acervo desse museu, não tinham espaço na história do Brasil escrita com imagens na decoração do monumento arquitetônico. Eram expostos e tratados como objetos etnográficos.

E hoje, que usos são feitos desses objetos, quando as narrativas que justificaram suas presenças nos museus são contundentemente questionadas? Quando o passado que representam é contestado, criticado e desconstruído segundo as práticas historiográficas contemporâneas, pela ideia do museu como laboratório da história e não um repositório de artefatos para comprovar verdades históricas absolutas, com a força política dos movimentos sociais e o compromisso de reparação junto aos povos indígenas no Brasil?

Em ambos os casos, os objetos foram recontextualizados e apresentados como documentos da própria história institucional. No MHN, o tacape ficou por mais de dez anos na exposição Oreretama (2006), no núcleo sobre “as artes da guerra”, em uma vitrine destacada, com iluminação especial, o que fortalecia a sua aura de relíquia. Não apenas por seu suposto pertencimento a Tibiriçá, mas principalmente por ser considerado o objeto indígena mais antigo do museu. Atualmente, integra a exposição de longa duração Îandé – aqui estávamos, aqui estamos, primeira iniciativa institucional de curadoria compartilhada entre os técnicos do museu, como André Amud Botelho e representantes dos povos indígenas, como Antônia Kanindé, inaugurada em fevereiro de 2023. Ali, o tacape foi exposto em uma vitrine, ao lado de uma boneca Karajá adquirida pelo museu em 1968, na coleção Sophia Jobim, e da Máscara Kalapalo, que integra o acervo do MHN desde os anos 1980, oriunda da coleção doada pelo indigenista Luiz Felipe Tsiipré. A vitrine integra um nicho sobre as representações indígenas no MHN, dando conta do crescimento e da diversificação da coleção de objetos indígenas na instituição.

 

Vitrine com o tacape na exposição Îandé no Museu Histórico Nacional. Foto: Paulo Schettino/ divulgação Museu Histórico Nacional, 2023.
Nicho integrado pelo tacape na exposição Îandé no Museu Histórico Nacional, onde também se vê, ao lado da vitrine, um colar Yawanawa e um Quarup. Foto: Paulo Schettino/ divulgação Museu Histórico Nacional, 2023.

Já no MP, o retrato de Tibiriçá segue no mesmo lugar, afinal de contas, compõe uma exposição que não pode ser modificada por ser tombada pelos órgãos de preservação do patrimônio, nas esferas municipal, estadual e federal. Porém, não está imune às intervenções de recursos expográficos que a historicizam e desestabilizam sua narrativa. É o exemplo do texto Uma história do Brasil e de um recurso multimídia com explicações e questionamentos sobre sua produção e suas possibilidades de leitura nos dias atuais.

Além disso, em frente ao quadro há outro recurso multimídia denominado “Contraponto”, no qual é transmitido um trecho do filme “Territórios de resistência: florestanias, sertanias e ribeirias”, produzido pela professora Maria Thaís Lima e pelo vídeoartista Ygohr Boy, no âmbito das atividades “Ocupação Museu do Ipiranga“. Nessa parte do filme, representantes indígenas narram as suas histórias sobre o que está ali representado, mostrando o quanto o presente vivido o desconstrói.

No dia 24 de setembro de 2023, também em frente ao Tibiriçá, posou a artista Celia Tupinambá, vestida em manto de penas de aves tecido por ela, com ajuda de sua comunidade e com a orientação dos mais velhos, segundo uma tecnologia ancestral (re)conhecida via sonhos. Sua presença e sua fala, inclusive com a identificação de um manto tupinambá na pintura de Oscar Pereira da Silva, “A Fundação de São Paulo” (1909), na exposição Passados Imaginados, também são contrapontos a essa história única.

Celia Tupinambá vestida com o manto que confeccionou, em frente ao Retrato de Tibiriçá, no Museu Paulista. 24 de setembro de 2023. Foto da autora.

Não podia deixar de destacar a exposição Territórios em disputa, de curadoria do professor Jorge Pimentel Cintra, e sua explicitação das tensões e dos conflitos pelo acesso e pela posse da terra. Mapas, pedras e imagens compõem a narrativa expográfica, que conta também com um contraponto polifônico, no qual podemos ouvir o escritor Ailton Krenak, que semana passada foi o primeiro indígena a tomar posse na Academia Brasileira de Letras, compartilhando a ideia de território segundo os povos originários.

Curadorias compartilhadas, intervenções em forma de textos, arte contemporânea e contrapontos, assim como a prática das escutas e das rodas de conversa têm sido caminhos promissores para a produção de outras histórias nos museus, com apropriações diferenciadas dos mesmos objetos de cem anos atrás e o estímulo a novas aquisições. São formas de lidar com o passado sensível e um presente comprometido com a reparação.

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P.S. 1. E por falar em contrapontos, não perca a Mostra contrapontos que acontecerá no Museu Paulista, no dia 20 de abril, sábado, às 14h.

P.S 2. Agradecimentos a Celia Tupinambá pela autorização do uso da imagem, a André Amud Botelho e Valéria Abdalla, do Museu Histórico Nacional, pelas imagens de Îandé e a Rafael Zamorano pela inspiração.

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Para saber mais:

CINTRA, Jorge Pimentel (Coord.). Territórios em disputa. São Paulo: Edusp: Museu Paulista da USP, 2022. (Coleção Museu do Ipiranga 2022; 7)

MARINS, Paulo Cesar Garcez. O museu da paz: sobre a pintura histórica no Museu Paulista durante a gestão Taunay. O Museu Paulista e a gestão de Afonso Taunay [recurso eletrônico]: escrita da história e historiografia, séculos XIX e XX. Tradução . São Paulo: Museu Paulista da USP, 2017.

NASCIMENTO, Ana Paula.  Entre a fricção e a serenidade, a caminho do interior: os painéis de Wasth Rodrigues no peristilo do Museu Paulista. Anais do Museu Paulista: História e Cultura Material, São Paulo, v. 27, p. 1–58, 2019.

OLIVEIRA, Mayara Manhães de. Representação sobre os índios no Museu Histórico Nacional: aquisições e exposições. Anais do Museu Histórico Nacional, Rio de Janeiro, v. 44, 2012, p. 179-197.

ZAMORANO, Rafael. A autoridade do especialista e do nome próprio na fundação do “passado colonial” no Museu Histórico Nacional. In: DAHER, Andrea (org.). Passado presente: usos contemporâneos do “passado colonial” brasileiro. Rio de Janeiro: Gramma, 2017.

2 respostas para “Histórias indígenas em museus… para além de Tibiriça”

  1. Avatar de David Ribeiro
    David Ribeiro

    Excelente reflexão, Aline!

    1. Avatar de Exporvisões

      Obrigada, David Ribeiro!
      Que bom que gostou. Sinta-se convidado para compartilhar as suas reflexões aqui neste espaço. Será uma honra!
      Forte abraço,

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