Fique em casa? A multidão no centenário da Independência (1922)

por Carina Martins

É curioso como a ideia de patriotismo foi apropriada, na história brasileira, para apoiar regimes ditatoriais ou francamente de extrema-direita, como nos últimos anos. Prestes a comemorar os 201 de nossa independência, observo um movimento na internet com o mote #fiqueemcasa liderado por “patriotas” e “cidadãos” do bem que consideram a tentativa fracassada de golpe militar no dia 8 de janeiro deste ano como um dia memorável para quem defende o Brasil. Para estas pessoas e redes, as Forças Armadas traíram o povo brasileiro ao não disparar o golpe engatilhado e, portanto, o 7 de setembro precisa ser boicotado. Eu, particularmente, não gosto da comemoração militar da data. Nunca participei do evento oficial, embora já tenha ido ao “Grito dos Excluídos”, que faz muito mais sentido nesse país tão desigual e excludente.

Essa campanha é trágica e um pouco cômica. Mas é trágico e abjeto utilizar o mote que salvou tantas vidas, o #fiqueemcasa durante a pandemia da COVID, que ainda dói em tantas famílias com lutos e difíceis recuperações (física, mental e financeira), como uma ironia.

A comemoração do bicentenário do Brasil, em 2022, facilmente será apagada das mentes e corações dessa geração. Trazer um coração decomposto de D. Pedro I, uma continuidade da necropolítica do Sesquicentenário de 1972, quando a Ditadura trouxe seu corpo para peregrinar pelo país, foi uma proposta que não acendeu interesse em praticamente ninguém. Não houve grandes festas, seminários, propostas, discussões, debates. Um vazio fúnebre, nada a comemorar. Terminamos o ano, soubemos posteriormente, com tentativas do ex-presidente retirar joias que entraram ilegalmente no país para subtraí-las do patrimônio público. Há imagem mais contundente do que o meme que circulou do ex-presidente como contrabandista de joias? Voltamos ao escambo colonial? Somos vendidos aos interesses estrangeiros?

Bem, o atual governo federal bem que poderia fazer este ano um “2022 + 1” para sacudir o mundo cultural em torno de um olhar diverso, plural e rico sobre esses nós que nos constituem, apertam e desatam formas de ser e estar. Eu acho que uma festa coletiva, alegre e diversa poderia ajudar a expurgar essas almas sebosas que tomaram conta do nosso país e continuam carrancudas por aí. E, claro, acionarmos as memórias de outras independências, como 0 2 de julho baiano e os canhões do Maranhão, Piauí e Cisplatina.

Se o presente recente não traz muito o que comemorar, vamos então olhar para o passado e perceber a importância da Exposição Internacional de 1922, inspiradas também no artigo da Aline sobre a Expo 1908. (https://ury1.com/yZwXx). Os tempos são outros: uma República recém-proclamada; novos atores e movimentos sociais; disputas culturais sobre a nação e uma reabilitação negociada da memória monárquica, com o banimento do exílio da família imperial em 1921. A memória nacional narrada em museus recém- inaugurados ou redimensionados, como o Museu Histórico Nacional, o Museu Paulista e o Museu Mariano Procópio, cada qual construindo relações entre presente e passado. Uma intensa ebulição literária e artística com a Semana de Arte Moderna. E uma capital transformada, com intensas obras urbanísticas e experimentações arquitetônicas em torno do eclético e neocolonial.

A Exposição Internacional de 1922 envolveu a construção de uma grandiosa estrutura nunca antes vista no país. É delicioso folhear as páginas do Grande Livro de Ouro da Exposição e imaginar o impacto da iluminação, dos pórticos, da programação festiva, da grandiosidade dos monumentos erguidos e do burburinho naquela geração. Imaginar o assombro da primeira transmissão de rádio, que ocorreu na Expo inaugurada no 7 de setembro de 1922 e que durou quase um ano devido a todo interesse. Para termos uma dimensão, a historiadora Marly Motta aponta uma frequência de 175 mil visitantes em fevereiro de 1923, considerado fraco pelo calor intenso que assolava a cidade, com piques de até 14 mil pessoas em um só dia. Isso meses depois de inaugurada! E com uma população nacional de cerca de 30 milhões de habitantes, é um arraso.

Imagem do Pavilhão de Festas da Exposição Internacional do Centenário da Independência do Brasil, Rio de Janeiro, 1922. Foto: Reprodução/ Biblioteca Nacional

De acordo com a pesquisa de Júlia Valente (2022), o recinto principal da Exposição do Centenário da Independência foi constituído por 80 edificações, entre construções novas e reformadas, situadas em uma área que se estendia por cerca de 2500 metros, entre o Palácio Monroe e o Mercado Municipal. Mesmo assim, sua abrangência foi muito maior, impactando a cidade. Atualmente, apenas quatro edificações foram preservadas da Exposição. Algumas são famosas, como a Academia Brasileira de Letras, que era o Pavilhão de Honra da França; o Museu Histórico Nacional, que foi o Palácio das Grandes Indústrias e o Museu de Imagem e Som, Pavilhão do Distrito Federal. A maioria, no entanto, foi destruída depois do evento. Imaginem, leitores e leitoras, investir tanto na construção de prédios e quase todos serem destruídos! Isso demonstra a importância das exposições universais para a ampliação dos mercados, visibilidade dos produtos capitalistas e exibição das nações, em um momento histórico em que “ver e ser visto” era uma premissa. Além disso, o fato de ter sido após a I Guerra também trouxe um ar de celebração festiva ainda maior.

Planta baixa da exposição. Fonte: A Exposição de 1922, n.1
Fotografia de um dos pórticos. Álbum: “Exposição Internacional do Centenário da Independência – Rio de Janeiro, Brasil – 1922/1923.” Disponível em: http://www.siaapm.cultura.mg.gov.br/modules/fotografico_docs/photo.php?lid=27029

Impressiona a fotografia de um dos pórticos instalados na Exposição Internacional. Observa-se as datas 1822 e 1922, unidas pela placa da exposição das grandes indústrias. Era o país que se exibia industrial, grande, monumental, progressista. As pessoas ficam diminutas diante deste destino novo. Inclusive, é possível perceber uma criança, possivelmente uma menina, andando por essa grande avenida do futuro. Ao lado, um círculo de homens bem vestidos em conversa, do outro, dois agentes de segurança. As bandeiras tremulam nas construções e no pórtico. Não consigo identificar o que retratam. Há uma ideia de vazio, de algo a se construir, como páginas em branco para o país desenvolver. Era uma pauta, uma esperança, uma proposta.

Claro que isso tem um preço e quem pagou foram, mais uma vez, as classes populares. O arrasamento do Morro do Castelo, as remoções, o alto custo do evento, as obras de embelezamento distantes de desejos e representações mais plurais. A imagem do Brasil sempre em construção e disputa.

E o que tivemos em 2022? Quais imagens de futuro foram produzidas? A imagem oficial do punho bradando uma espada inventa o que? Ao escrever e lembrar coisas de um ano tão difícil, que começou com as tragédias em Petrópolis e terminou com a vitória da democracia com a ardidura de um golpe envolvendo, ao que parece, chefe do executivo, altas patentes militares, empresários e ricos fazendeiros, eu sinto um forte desejo de que nossa independência de processos coloniais, autoritários e violentos seja mote para engajamento permanente. Há muito o que se fazer.

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Para saber mais:

https://atlas.fgv.br/verbetes/exposicao-internacional-do-centenario-da-independencia-do-brasil

Livro de Ouro Comemorativo do Centenário

https://objdigital.bn.br/objdigital2/acervo_digital/div_obrasraras/bndigital0447/bndigital0447.html#page/30/mode/1up

VALENTE, Julia. Um século da Exposição Internacional do Centenário da Independência:leituras, vestígios e permanências. Petrópolis, UERJ, 2022.

 

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